Os direitos humanos e o direito natural

A seguir, apresentamos alguns trechos do texto Sobre a filosofia dos direitos do ser humano, que Jacques Maritain escreveu em resposta à pesquisa da Unesco sobre os fundamentos filosóficos dos direitos humanos, em 1947 (Unesco’s survey about the philosophical foundations of human rights).

Discordo da opinião de que o conceito de direitos humanos do século XVIII era uma extensão para a pessoa humana da ideia do direito divino dos reis ou dos direitos irrevogáveis que Deus concedeu à Igreja. Estou mais inclinado a dizer que esse conceito tem, em última análise, a sua ascendência na longa história da ideia de direito natural e do direito das nações, desenvolvida pelo mundo antigo e pela Idade Média, e mais imediatamente surge da distorção unilateral e da petrificação racionalista que essas ideias, para seu grande prejuízo, sofreram desde a época de Grotius e o nascimento de um raciocínio mecanicista. Por um equívoco fatal, a lei natural (que é interior à criatura e precede qualquer expressão explícita) foi vista como um código escrito a ser proclamado a todos, do qual toda lei justa seria uma cópia e que decidiria a priori cada detalhe das normas de conduta humana em prescrições supostamente ditadas pela natureza e pela razão, mas na verdade formuladas de forma arbitrária e artificial. Além disso, terminamos deificando o ser humano e considerando todos os direitos que lhe são concedidos como absolutos e ilimitados.

Na minha opinião, qualquer tentativa de justificação racional da ideia de direitos humanos, bem como da ideia de direito em geral, exige que redescubramos suas verdadeiras conotações metafísicas, seu dinamismo realista e sua humilde dependência da natureza e da experiência, recuperando o real conceito de lei natural, que foi desfigurado pelo racionalismo do século XVIII. Feita tal redescoberta, podemos compreender como uma certa ordem ideal, enraizada na natureza humana e na sociedade, pode impor exigências morais universalmente válidas ao mundo da experiência, da história e dos fatos, e estabelecer para a consciência, tal como para a lei escrita, princípios permanentes e normas universais de direito e dever.

[… Temos que considerar ainda] a imensa influência do condicionamento económico e social e, em particular, a importância dos novos pontos de vista e dos novos problemas, de modo a transcender o individualismo liberal ou burguês e alcançar os valores sociais da vida humana, que as crises e catástrofes da economia capitalista e o advento histórico do proletariado trazem à luz.

Jamais uma declaração de direitos humanos será exaustiva e final. Sempre andará de mãos dadas com o estado da consciência moral e da civilização num determinado momento da história.

[…] Qualquer declaração de direitos humanos envolve necessariamente uma ordenação de direitos de graus diferentes. Alguns satisfazem uma exigência absoluta da lei natural, como o direito à existência ou o direito de professar, sem interferência do Estado, a religião que se acredita ser verdadeira (liberdade de consciência). Outros respondem a uma necessidade do direito das nações, baseado no direito natural, mas relativizado na sua aplicação pelos direitos humanos e pelos requisitos do bem comum, como o direito à propriedade e ao trabalho. Outros, ainda, satisfazem a uma aspiração ou desejos do direito natural, confirmado pelo direito positivo, mas sujeito a limitações exigidas pelo bem comum, como a liberdade de imprensa, de expressão e de associação. Estes últimos tipos de liberdades não podem ser estabelecidos como absolutos; pois são direitos condicionados pelo bem comum, ainda que todas as sociedades sejam obrigadas a reconhecê-las. É uma infelicidade para o liberalismo moderno ter tornado impossível tal distinção e se ver obrigado, como resultado, a contradizer-se ou a recorrer a meios hipócritas para limitar na prática o exercício de direitos que ele apresentou como fundamentais, teoricamente absolutos e sacrossantos.

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