Um casal indissociável: Raïssa e Jacques

Um casal que testemunhou o absoluto de Deus no cotidiano do magistério, da cultura, da política, do direito, da diplomacia, em face dos principais problemas do século XX

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Quem visita o cemitério alsaciano de Kolbsheim encontra uma lápide com a inscrição: “Raïssa Maritain (1883-1960)”, seguida de outra, menor, mais embaixo: “e Jacques (1882-1973)”. Numa reflexão menos distraída, esta conjunção “e” cabe muito bem para exprimir o destino de um casal de intelectuais que fez da existência uma só vida, pois, como ensinou Walter Benjamin, “viver não é apenas existir”. Vidas indissociáveis, a tal ponto que o filósofo pôde escrever que “Sem ela, não haveria Jacques. Raïssa me ajuda o tempo todo, enquanto eu tropeço sobre as pedras do caminho.” Mais que isso: esposos que permitiram que sua amizade humana, humaníssima, fosse aperfeiçoada pela Graça do sacramento.

É o caso de indagar: a que caminho aludia Jacques, que pedras? Um caminho que começa de um encontro na maior universidade da França, a Sorbonne, ambos estudantes quase desesperados por não encontrarem numa das melhores universidades do mundo um sentido para a vida. Alguém pode fazer uma imediata aproximação: será que progredimos tanto assim? As universidades, sinceramente, têm sido um adequado e ousado ambiente propício para – por meio das ciências, da filosofia e das artes – despertar um autêntico sentido para a vida, um viveiro para a saudável convivência humana, bem além de um préstito de competições?

No caso daqueles jovens enamorados, Jacques diz que foi a sua amada que lhe “mostrou a estrada, designou o objetivo e preservou os pés de falsos passos”.

Foi desse enlace entre duas inteligências brilhantes, uma sem se impor ou ofuscar a outra, que nasceu um amor inapagável, a conversão ao catolicismo, um fascínio pela Graça de Deus, o desejo da santidade. Valores que souberam testemunhar na cidade secular. Intelectuais que, respeitando e dialogando com os que pensavam diferentemente deles, nunca tiveram vergonha de falar de fé, de misericórdia, de oração.

O mesmo interlocutor de cima, desatento, sem tirar os olhos do celular, vai exclamar: Que coisa mais “demodé”, mais superada!

Ah… se ele lesse a obra de Raïssa, As grandes amizades, sua auto-biografia, que ela escreveu durante os horrores da Guerra (1940, tradução em português em 1947, pela Editora Agir, que as editoras católicas atuais não se despertam para reeditá-la), veria o que é o amor de um casal procedendo da busca pela Verdade, e o conhecimento frutificando em Caridade. Se Jacques foi um filósofo tomista (um tomista e não um simulacro de tomista) que apostou na inteligência, que procurou decifrar as profundezas da existência; Raïssa foi a mística que – com leveza, beleza, “finesse” – ilustrou a partir dos grandes temas da metafísica o encontro com a Graça num mundo de vaidades, de dor, de absurdidade, violência, matanças, sem qualidade social, cruel desigualdade.

A Caridade é uma amizade. Não é possível compreender o Amor de Deus se não soubermos o que é o amor humano. Raïssa e Jacques levaram a sério a amizade entre um homem e uma mulher, para além das convenções, das pressões sociais. E Aristóteles ensinou que a amizade está ligada à virtude da justiça, pois supõe a reciprocidade no afeto, cada qual se esforçando para que o outro seja sempre melhor. O que une os amigos não é só compartilhar os mesmos gostos e preferências. Isso, certamente, seria já “amizade”. Mas o casal Maritain se abriu para as “grandes amizades”, não se satisfez somente em conservar ciosamente seus amigos, experimentou e cultivou a alegria em compartilhar, ser intermediário de novas amizades. O que os distinguia era precisamente comungarem e serem arautos de valores intelectuais e morais, e difundir, contagiar, irradiar o tesouro da Fé que lhes deu o sentido da vida.

Que maravilha seria se as Sorbonnes da vida e os organismos que lhes dão forma zelassem para que a juventude não fosse intoxicada com a alienação da realidade, a insignificância – pior ainda, a indiferença – mas que lhes infundisse a paixão pelo encontro com a Verdade, seja qual for seu semblante, esteja ela onde estiver. “Mesmo que a Verdade venha da boca do demônio, ela vem do Espírito de Deus” (Santo Tomás de Aquino, citando Santo Ambrósio e Santo Agostinho).

Raïssa e Jacques, um casal incompreensível para os critérios de nossa época, se bem que precedidos – para ficarmos somente na França da passagem do século XIX para o século XX – pelo luminoso exemplo de outro casal surpreendente, os pais de Santa Teresa de Lisieux (Zélia e Luís Martin, canonizados pelo Papa Francisco em 2015), ou seus contemporâneos Elisabeth e Albert Leseur, e tantos outros que a história da Igreja nos haverá de revelar.

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