As famílias podem ser um eixo norteador das políticas públicas, tornando tais políticas mais integradas, mais eficientes e, sobretudo, mais humanas

Imagine uma família sustentada por uma mulher solteira, na casa dos 40 anos, com dois filhos em idade escolar, responsável também por cuidar dos pais com mais de 70, aposentados com um salário mínimo – é o que recebem quatro em cada cinco aposentados no Brasil. Para que os filhos disponham de boa educação e tempo livre de qualidade – sem excesso de telas, e protegidos também das más influências –, além de boas escolas, essa mãe precisa de boas praças, bons parques, espaços públicos de qualidade que ensejem a convivência comunitária. Sem isso, as crianças ficarão trancadas em casa, impedidas de brincar livremente. Para deixar seus pais em segurança, evitando acidentes domésticos comuns aos idosos, nossa protagonista também necessita de centros específicos, que lhes ofereçam atividades e os cuidados necessários. Que estes recursos destinados aos mais jovens e aos mais velhos sejam acessíveis e integrados também é importante: não são poucos os amigos dos filhos, e de outras crianças, que são cuidados pelos próprios avós. Isso sem falar em outros elementos que apoiam a rotina: bom transporte público, para que o escasso tempo de descanso não seja forçosamente transformado em jornada; postos de saúde, para vacinas e consultas em dia; flexibilidade no trabalho, para atender aos imprevistos inescapáveis do cotidiano; segurança, para que as crianças possam estar na rua brincando, como até pouco tempo era frequente nas cidades.
Um enfoque integrado, pró-família. Diz a sabedoria popular que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Uma vez que crianças têm pais, avós, tios e tias com necessidades próprias, também é preciso uma aldeia inteira para cuidar de uma família. Em tempos como os nossos, em que se é muito difícil contar com uma verdadeira comunidade (o nosso equivalente a uma aldeia), o melhor que se pode proporcionar em larga escala são políticas públicas – e, em um país marcado pela desigualdade como o nosso, muitas são as famílias que dependem, que precisam delas. Na prática, na ausência desse apoio comunitário, muitas famílias buscam apoio contratando serviços: babás, cuidadores de idosos, escolas etc. Porém, a dura realidade é que apenas 20% das famílias brasileiras têm renda suficiente para adquirir esses serviços, conforme dados do IBGE; ou seja, quatro em cada cinco famílias não têm dinheiro para isso e dependem, portanto, dos serviços oferecidos pelo governo. Mas são poucas as políticas públicas que têm por centro, mais do que faixas etárias ou gênero, a própria vida comum. Este é um dos motivos pelos quais, apesar dos recursos despendidos pelo Estado, ainda falta muito para que as famílias realmente se sintam seguras frente aos desafios impostos pelos cuidados das pessoas, dos recém-nascidos às pessoas idosas dependentes. Pais e mães, idosos, adolescentes e crianças não vivem isolados, compartimentados por “secretarias”: vivem em família. Mas as políticas públicas vigentes insistem em uma segmentação da realidade que, por vezes, é contraproducente, também consequência da maneira com que a administração pública é organizada, em “departamentos”.
Existem, contudo, alternativas concretas, já aplicadas em cidades do Brasil e do mundo, com sólidos resultados em termos de fortalecimento das famílias. O projeto Cidades Inclusivas para Famílias Sustentáveis (Cifs) é uma iniciativa internacional que busca justamente estimular esse enfoque integrado e que efetivamente apoia as famílias.
No Brasil. No último mês de junho, na cidade de São Paulo, como parte da programação da Virada ODS, iniciativa brasileira de destaque internacional voltada à promoção da Agenda 2030, foi realizado o I Encontro Nacional de Cidades Inclusivas para Famílias Sustentáveis. O evento foi promovido pela Prefeitura de São Paulo, em parceria com o Family Talks, representante nacional do Cifs. Não por acaso, o encontro aconteceu no início de um novo ciclo de mandatos municipais, momento em que prefeitos e vereadores têm maior liberdade para repensar prioridades, organizar suas equipes e, sobretudo, definir as metas de suas administrações para os próximos quatro anos. Nossa sugestão é clara: nada é mais importante em uma cidade do que ajudar as famílias a cuidar das pessoas.
Em si mesmo, o evento é um exemplo do que se pode fazer, tendo em vista um futuro no qual as famílias são princípio, meio e fim das políticas públicas no Brasil: mobilizar as cidades com as melhores iniciativas nesse âmbito a compartilhar seus resultados e experiências. Estiveram presentes, por exemplo, gestores e representantes de Barueri (SP), Jundiaí (SP), São Carlos (SP), todas signatárias da Declaração de Veneza, compromisso internacional por cidades mais acolhedoras para as famílias. Muitos desses municípios possuem, por exemplo, secretarias dedicadas exclusivamente ao assunto, uma proposta que, a depender do contexto, tem suas vantagens. À primeira vista, uma “secretaria da família” pode parecer mais um “cabide eleitoral”, um canal para escoar impostos sem finalidade clara. Na prática, essas secretarias podem ajudar no mapeamento do perfil das famílias, ajustando as políticas disponíveis na cidade às necessidades reais de seus moradores. Também podem trabalhar de forma integrada com serviços de assistência social, educação e saúde, garantindo que a vida familiar seja o princípio estruturante de toda sua atuação.
Um caminho para o futuro. Já se vê, no horizonte próximo, um Brasil envelhecido, que pouco encoraja a formação de novas famílias: a taxa de natalidade de 1,6 filho por mulher, revelada no último Censo, é prova irrefutável de que as pessoas estão desistindo delas, e o aumento de mais de 50% no número de idosos na população ao longo da última década corrobora um cenário no qual é cada vez mais difícil e custoso cuidar das pessoas. O problema é que todos, sem exceção, precisamos e precisaremos de cuidados um dia, e haveremos de recebê-los dos que nos são mais próximos e nos conhecem pelo que somos, e que geralmente estão dentro da família. Nenhum Estado, afinal, é capaz de dar colo a um bebê choroso ou ouvir com atenção as ricas memórias de uma avó. Pode, contudo, apoiar este papel por maio de seus braços que estão mais próximos da vida comum, no dia a dia de uma cidade. É certo que viveremos em um país diferente quando a prioridade de cada uma delas for uma só: tornar a missão das famílias mais fácil.

Family Talks é um programa de advocacy que tem como objetivo propor ações para a defesa dos direitos e o fortalecimento das famílias junto a lideranças nas esferas civis e governamentais. O programa está vinculado à Adef (Associação de Desenvolvimento da Família), uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, apartidária e não confessional, fundada em 1978. A missão da Adef é promover projetos para o fortalecimento dos vínculos familiares por meio da defesa de direitos e da ação direta com as famílias.
Para conhecer melhor o Family Talks, veja: https://familytalks.org/.



