A Sagrada Liturgia

Já tratamos em editoriais anteriores das constituições conciliares sobre a Revelação (Dei Verbum) e sobre a Igreja (Lumen gentium). No presente, queremos continuar nosso percurso sobre os principais documentos do Vaticano II, falando dessa vez da Sacrosanctum concilium, a constituição “sobre a Sagrada Liturgia”.

Nas décadas que precederam o Concílio, o tema da liturgia já vinha sendo foco de discussão do chamado Movimento Litúrgico. Tratava-se de um grupo de teólogos que apontavam o problema de que, em muitos lugares, tinha-se a equivocada noção de que os fiéis leigos eram meros “espectadores” da liturgia, enquanto que o único verdadeiro ator da Santa Missa seria o sacerdote celebrante. Sintoma desta distorção era a grande deficiência na formação catequética dos fiéis, que não sabiam explicar minimamente as partes da Missa e seu sentido: por vezes, via-se fiéis que passavam a Missa inteira recitando o Terço de forma privada, alheios ao que se passava no Santo Sacrifício. Este era um problema sério, pois a forma com que cultuamos a Deus acaba se refletindo na pureza de nossa fé e na retidão de nossas vidas: lex orandi, lex credendi, lex vivendi. Nesse sentido, o principal objetivo da “reforma e incremento da sagrada Liturgia” desejado pelo Concílio foi promover a “plena e ativa participação de todo o povo” (n. 14).

Nesse sentido, podemos citar vários pontos da reforma litúrgica que tiveram por objetivo justamente fomentar a participação consciente dos fiéis na Missa: os cantos, as respostas ao salmo e as aclamações ao Evangelho, as procissões das ofertas, uma maior gama de momentos com posturas corporais prescritas (estar de pé, sentado ou de joelhos), entre outros pontos. Quanto à linguagem, e considerando que grande parte dos fiéis não possuía um domínio suficiente da língua latina, concedeu-se um “lugar conveniente” à língua vernácula (no Brasil, o português), “especialmente nas leituras e homilias, em algumas orações e cantos” (n. 36, §§ 1 e 2 e n.54).

No entanto, nos anos que se seguiram ao Concílio, e apesar dos louváveis esforços de implementação de suas diretrizes vindos de muitas partes, não faltaram também abusos e infidelidades à direção dada pelos padres conciliares – e todos os papas pós-conciliares lamentaram este fato. São Paulo VI condenava a atuação de “quem aproveita da reforma para se entregar a experimentações arbitrárias” (Audiência Geral de 22/08/1973); São João Paulo II lamentava que, “infelizmente, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não faltaram abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos”, e fazia “um veemente apelo para que as normas litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na celebração eucarística” (encíclica Ecclesia de Eucharistia, n. 52); Bento XVI advertia que, nos anos pós-conciliares, “em muitos lugares as celebrações não eram fiéis às normas do novo Missal – pelo contrário, este era interpretado como se tivesse autorizado ou mesmo exigido criatividade, o que frequentemente levou a deformações da liturgia que eram difíceis de tolerar” (Carta aos bispos por ocasião da publicação do motu próprio Summorum Pontificum); e o Papa Francisco, citando justamente este mesmo trecho de seu predecessor, pediu aos bispos do mundo inteiro que sejam “vigilantes para garantir que toda liturgia seja celebrada com decoro e fidelidade aos livros litúrgicos” (Carta aos bispos por ocasião da publicação do motu proprio Traditionis Custodes), esclarecendo ainda que “todos os aspectos do celebrar devem ser cuidados (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestes, canto, música…) e todas as rubricas devem ser observadas” (carta apostólica Desiderio Desideravi, de 29/06/22).

Cabe a cada um de nós buscar conhecer as normas e o sentido de cada parte da Missa: para isso, existe um documento oficial da Igreja, chamado Instrução Geral do Missal Romano, que vem no começo de cada Missal, e pode também ser encontrado em separata. Busquemos conhecê-lo e sejamos-lhe fiéis, em obediência ao que pede o Vaticano II e todos os papas pós-conciliares.

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