A tentação ainda existe?

No primeiro Domingo da Quaresma de cada ano, lê-se um dos relatos evangélicos sobre as tentações de Jesus no deserto. Depois do batismo no rio Jordão, antes de iniciar sua missão pública, Jesus, “movido pelo Espírito Santo”, retirou-se no deserto por 40 dias e foi tentado por Satanás. Três foram as tentações, relatadas de maneira esquemática e com elementos simbólicos bem expressivos: transformar as pedras em pão, para matar sua fome; adorar o diabo, para receber dele poder sobre o mundo; e colocar Deus à prova, para ver se Ele existe mesmo.

Essas tentações não são pequenas e, nelas, muita coisa estava em jogo. Elas, de fato, punham em questão a credibilidade de Jesus como testemunha de Deus diante dos homens e visavam ao seu fracasso diante de Deus e dos homens. Significavam trocar a adoração e o reconhecimento da soberania de Deus, para sujeitar-se ao demônio. Em outras palavras, em vez de anunciar o reinado de Deus, Jesus estava sendo tentado a se comprometer com o reinado do diabo no mundo. E isso seria a falência de sua missão.

Alguém dirá que, para Jesus, foi fácil vencer as tentações, porque Ele era o Filho de Deus. É verdade que Ele era o Filho de Deus, mas também era verdadeiramente humano (“verdadeiro Deus e verdadeiro homem”) e, por isso, Ele teve de enfrentar a tentação com esforço e firmeza, como todos os humanos. Santo Agostinho observa que Jesus foi tentado pelo demônio também por todos nós. Ele assumiu as nossas tentações para nos mostrar como se vence o tentador e nos dar a esperança da vitória sobre ele.

Para vencer o tentador, Jesus contou com três auxílios muito importantes para Ele e para nós também, se quisermos vencer o tentador: o jejum (penitência), a oração e a Palavra de Deus. Ele passou 40 dias no deserto em jejuns e orações a Deus. Era “movido pelo Espírito Santo”, o que significa que estava buscando a comunhão com Deus e a sintonia com a sua vontade, antes de iniciar o anúncio do Reino de Deus aos homens. O tentador aproximou-se de Jesus no momento da fome e do desfalecimento; os momentos de fragilidade podem ser portas abertas à tentação e, também, para a ação de Deus. A tentação precisa ser “governada” com discernimento, sem se deixar levar pelo primeiro impulso para satisfazer desejos, ambições ou necessidades.

O tentador conhece a Escritura e argumenta em base a ela, mas manipula a Palavra de Deus para alcançar seus propósitos. Jesus lhe retruca, também usando a Palavra de Deus, mas com o claro propósito de ser fiel a ela. Ouvir, conhecer e amar a Palavra de Deus são armas fortes contra o tentador. O diabo mexe com algumas questões muito caras ao homem: sua autonomia, liberdade e vontade de domínio; seu bem-estar diante da ameaça e do sofrimento, ainda que seja para “fazer pacto com o diabo” e ao preço de “vender a alma para o diabo”; o tentador sabe mexer com a vaidade humana e a busca da glória, mesmo que signifique a renúncia aos princípios mais valiosos da vida.

Mas, é o caso de se perguntar: a tentação ainda existe? Ao falar em tentação e demônio, é fácil colher sorrisinhos, como se se tratasse de coisas infantis e superadas. Usando uma expressão popular, pode-se dizer: “Aí é que o diabo gosta!” Não sendo levado a sério, o tentador tem campo aberto e livre para a sua ação. Ainda hoje existe a tentação, ou isso não ficou para a história dos mitos de um passado, “quando Deus ainda estava vivo”. O filósofo Friedrich Nietzsche e muitos, depois dele, proclamaram a era em que Deus está morto e o homem assume o lugar de Deus. Talvez o filósofo compreendeu que essa era a grande tentação do homem de hoje e de sempre. Já foi a tentação de Adão e Eva, que se deixaram convencer pela “serpente”: Comendo o “fruto proibido”, seriam iguais a Deus. Ao longo da história, não foi sempre essa a grande tentação de poderosos e fracos também, proclamando-se acima do bem e do mal, assumindo o lugar de Deus e impondo regimes de horror aos povos?

Por trás de toda “pequena” tentação, é esta a grande e verdadeira tentação: ser como Deus. Toda tentação tem por objetivo desviar-nos de Deus, de sua lei, de seus mandamentos, de sua vontade, de seu desígnio de salvação e vida. E o objetivo é a proclamação da nossa autonomia em relação a Deus: para quê Deus, se eu mesmo posso ser como Deus? A tentação é rejeitar a soberania de Deus sobre nós e o mundo, escolhendo nossa autossuficiência, o sentido da vida e nossas ações. A tentação, em síntese, é negar-se a crer, esperar e amar a Deus; é deixar de adorar a Deus e servir somente a Ele em nossa vida. Em tudo isso, quantas propostas ardilosas e enganadoras do tentador! Mas também nós podemos “desarmar as ciladas da antiga serpente e vencer o fermento da maldade”, com a graça de Deus (cf. Prefácio da Missa). Jesus abriu-nos o caminho e nos deixou o exemplo.

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