Abre tua mão para o teu irmão

A frase que serviu de lema ao Mês da Bíblia de 2020 foi extraída do livro do Deuteronômio. Convém, de início, citar por inteiro o versículo: “Nunca faltarão pobres na terra, e por isso dou-te esta ordem: abre tua mão ao teu irmão necessitado ou pobre que vive em tua terra” (Dt 15,11). Aliás, os “pobres e indigentes”, tanto na face de todo o globo, quanto do país em que vivemos, parecem ter aumentado com a pandemia de COVID-19. Na verdade, além de desmascarar a pobreza oculta e silenciada, o flagelo do coronavírus a trouxe às ruas e praças, contribuindo, por sua vez, para criar novos desempregados e subempregados, que, como aves de arribação, erram de um lado para outro ao sabor dos ventos e das migalhas do capital.

O contexto daquele preceito, entretanto, deve ser buscado um pouco mais adiante no mesmo livro bíblico: “Quando tiveres colhido as uvas da tua vinha, não voltes para apanhar o que tiver sobrado: o resto será para o imigrante, o órfão e a viúva. Lembra-te: foste escravo no Egito. É por isso que te ordeno agir desse modo” (Dt 24,21-22). Por trás desse comportamento diante dos mais necessitados – estrangeiros, órfãos e viúvas –, está a lembrança inesquecível da escravidão no Egito. A experiência da escravidão em um país estranho deve servir de antídoto para qualquer tipo de opressão futura. Uma vez que foste escravo sob a tirania de faraó, deves cuidar do estrangeiro que vive a teu lado!

A esse trinômio dos prediletos de Deus, que aparece repetidamente no Antigo Testamento, porém, não seria difícil acrescentar outros rostos igualmente marcados por séculos de abandono, penas e dores, como “feições sofredoras de Cristo”. É o que fez, por exemplo, o documento final da assembleia dos bispos da América Latina e Caribe, de 1979, em Puebla, no México. “Desfilam, entre outros, os rostos de crianças, jovens e anciãos, bem como de indígenas e afro-americanos, camponeses e desempregados” (Documento de Puebla, 31-39). Já na assembleia de Aparecida, os rostos se ampliam, incluindo os migrantes, os dependentes de drogas, mas também os enfermos, os prisioneiros, as mulheres e o meio ambiente, este último como face devastada e dilacerada do planeta Terra (Documento de Aparecida, 411-475).

Emerge com força o conceito de cuidado, tão caro ao Papa Francisco, seja na carta encíclica Laudato si’, de 2015, seja em sua atitude solidária para com os imigrantes e refugiados. Cuidado, em primeiro lugar, com o teu irmão de sangue que, às vezes, mesmo no interior de casa e da família, debaixo do mesmo teto, sente-se abandonado e esquecido. Cuidado, em seguida, com o teu irmão pobre, excluído e descartável, órfão de trabalho, de direitos e de pátria, errando à deriva pelas estradas do êxodo, do exílio e da diáspora. Cuidado, enfim, com a preservação do ar, das águas e do meio ambiente, “nossa casa comum”, no sentido de que ninguém sobre ela se sinta jamais estrangeiro, mas convidado a uma cidadania universal e sem fronteiras, sinal e antecipação da Boa-Nova do Reino de Deus.

Padre Alfredo José Gonçalves, CS, pertence à Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos).

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