Acerca de uma obra sobre Ciência e Fé

Há pouco tempo a editora Loyola publicou um livreto, escrito pelo eminente teólogo e Cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, denominado Darwin e o Papa. O falso dilema entre criação e evolução (São Paulo: Loyola). Leitura acessível, recomendada a qualquer católico.

Porém, confesso que fiquei incomodado com o termo “falso”. De um lado, o uso é próprio, pois, em termos do dogma católico, fé e razão humana não podem se contradizer. Por outro lado, em termos históricos, essa premissa pode levar a concordismos fáceis. O autor aponta a postura de diálogo dos papas, principalmente a partir de João Paulo II, respeitada a autonomia das diferentes esferas de conhecimento: “a ciência se dedica aos fatos, aos dados; à ‘cena’, ao ‘como’; a metafísica e a religião se consagram aos valores, aos significados últimos, ao ‘fundamento’, ao ‘porque’;” (p. 28)

Acontece que toda teoria científica de longo alcance, como é o caso da teoria da evolução por seleção natural, inevitavelmente inclui questões filosóficas que são, reconheçamos, de difícil solução. Como compatibilizar uma narrativa científica da evolução das espécies no planeta, e dos mecanismos que operam a nível molecular na seleção natural, com a doutrina da providência divina, como o autor procura fazer? O próprio Darwin resvalou para um agnosticismo, pois não conseguiu conciliar a noção de um Deus amoroso com o excesso de mal evidenciado na natureza e na morte da filha que ele mais amava.

É preciso levar “Darwin a sério”, como diz Michael Ruse, um dos mais eminentes estudiosos do darwinismo (apesar de agnóstico, ele também escreveu Pode um Darwinista ser Cristão?, com uma resposta afirmativa). Ele sugere distinguirmos a evolução como fato (passado e presente), como caminho (o curso temporal), como mecanismos (causas) e como teoria científica. Sob cada um desses aspectos, surgem inúmeras questões que desafiam o senso comum (a vida como tendo finalidade) e as crenças (p.ex., na lei natural). Contrariando o senso comum, além disso, o registro fóssil hoje cumpre papel menor nos estudos sobre evolução, destacando-se a biologia molecular e estudo/manipulação do DNA.

Com a manipulação genética, inclui-se um novo nível de reflexão, o da moral, além daquele da metafísica e da teoria do conhecimento. Qualquer diálogo se torna tenso e sobrecarregado de informação e avaliações. Mas permaneço pelo momento no plano do entendimento do real. Aí o velho problema do mal e da falta de finalidade dos processos naturais surge com força, e a crença na Providência se mostra incapaz de dar conta das dúvidas. Nesse momento, falta uma reflexão de cunho mais cristológico: Cristo não morreu só por nossos pecados, pelos males humanos, experimentou a cruz também para redimir o mal e a falta de esperança no mundo. A angústia de Jesus no Horto das Oliveiras pode surgir como analogia forte para a tensão vivida pelo cristão no trato com a visão de mundo desencantada da ciência, e valoriza o papel da fé na vida do pesquisador cristão.

Eduardo R. Cruz é professor titular do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP.

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