Cadê o pão nosso de cada dia?

Derivados do desemprego, do subemprego e do trabalho informal crescentes, bem como da precariedade das relações trabalhistas em geral, os dados são preocupantes: “O número de brasileiros sem ter o que comer quase dobra em dois anos de pandemia”. Essa é a conclusão a que chegou o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no contexto da pandemia de COVID-19, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). 

As consequências atingem grande parte das camadas de baixa renda: “O levantamento divulgado no dia 8 mostra que o País soma atualmente cerca de 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer diariamente, quase o dobro do contingente em situação de fome estimado em 2020”. Os estudiosos, entretanto, não hesitam em assinalar que cerca da metade da população brasileira vive algum tipo de insegurança alimentar. 

O inquérito leva Ana Maria Segall, médica epidemiologista e pesquisadora da Rede Penssan, a concluir: “A pandemia surge neste contexto de aumento da pobreza e da miséria, e traz ainda mais desamparo e sofrimento. Os caminhos escolhidos para a política econômica e a gestão inconsequente da pandemia só poderiam levar ao aumento ainda mais escandaloso da desigualdade social e da fome no nosso País” (cf. G1, em 8 de junho de 2022).

Semelhante cenário comprova aquilo que, a olho nu, estamos assistindo nas cidades médias, nas capitais dos estados e, de forma particular, nesta imensa metrópole de São Paulo. Por toda parte, as praças são tomadas por tendas de lona improvisadas, enquanto longas filas se formam para receber o café da manhã, em alguns lugares, ou marmita “quentinha”, em outros. Além do drama da cracolândia (ou cracolândias), convivemos diariamente com novas pessoas chegando às ruas para se estabelecerem.

São idosos, adultos, jovens, mulheres, crianças e, não raro, famílias inteiras despejadas de suas casas. Na medida em que o trabalho se divorcia do emprego estável, sobrando para grande parte dos trabalhadores apenas os “bicos” temporários e incertos, torna-se cada vez mais difícil arcar com os preços do aluguel. Mas até mesmo para os que possuem uma moradia precária, boa parte não mais consegue garantir o “preço de morar”: gás, contas de luz e água, produtos de limpeza e higiene etc.

Poucas coisas são tão necessárias ao núcleo da dignidade humana quanto o endereço fixo. Deste, aliás, dependem quase todos os direitos básicos, como educação, saúde, emprego, acesso ao crédito, segurança alimentar – enfim, a autoestima em relação a si mesmo e a confiança em relação aos familiares, amigos e cidadãos em geral. A chave da própria casa consiste no símbolo visível dessa dignidade. A falta dela fecha a entrada a outras portas e oportunidades do bairro, da cidade e do mundo.

O fio condutor do corpus da Doutrina Social da Igreja – a dignidade humana – vem sendo rompido para milhões de pessoas no Brasil e no mundo. Guerras, violência, crise climática e pandemia, tudo escancarado e agravado pela pandemia, fazem crescer as desigualdades sociais, atirando multidões de pessoas às estradas. Daí o aumento de migrantes, refugiados, deslocados e gente sem moradia. Reverter esse quadro é desafio das organizações internacionais, das nações, da Igreja e das entidades que lutam pelo bem-estar de “nossa casa comum”.

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