Nestes meses em que o mundo está sendo submetido a uma dura prova por causa da pandemia, testemunhamos atitudes heróicas de pessoas de todos os setores da sociedade. Profissionais da Saúde dos cinco continentes manifestam um espírito de sacrifício que recebeu aplausos vindos das janelas dos lares de muitas cidades. Os meios de comunicação transmitiram notícias de profunda humanidade, ao narrarem iniciativas solidárias de inumeráveis pessoas que se mobilizaram – e continuam a fazer isso – para oferecer remédio às necessidades urgentes que se apresentaram. A Igreja também reagiu com generosidade, e várias centenas de sacerdotes deram a vida para levar os auxílios espirituais aos doentes. A dor e o sofrimento unem e é frequente que, muitos vizinhos que antes não se conheciam, agora estejam unidos por laços de amizade, pois se ajudaram nos momentos de maior emergência.
Na audiência geral do dia 23 de setembro, o Papa Francisco lembrava que “ou trabalhamos juntos para sair da crise, em todos os níveis da sociedade, ou jamais sairemos”. Se começamos estas linhas comentando tantos exemplos positivos de entrega aos outros durante a crise da pandemia, não podemos fechar os olhos às realidades negativas.
A cultura contemporânea, que possui tantos valores positivos, ao mesmo tempo está marcada por uma doença grave, a que se refere o Santo Padre: o individualismo. Por mais que a atual crise sanitária seja superada, se não nos unirmos, se não olharmos os outros como nossos próximos – como pessoas que têm, em si mesmas, um valor único, que merecem respeito, compreensão e proximidade –, permanecerão as feridas de uma sociedade individualista e anônima, terminando por se converter em um campo de batalha entre interesses egoístas.
O trabalho é uma dimensão essencial da vida social. A crise sanitária causou uma crise trabalhista de grandes proporções. Os desafios que se apresentam são muitos e urgentes. Nas circunstâncias atuais, algumas características do trabalho que podem atenuar as consequências negativas da crise são especialmente relevantes. Penso, em primeiro lugar, no espírito de serviço. O trabalho está a serviço do bem comum social e da pessoa humana entendida em sua integridade. A criação de novos postos de trabalho, a conservação dos que já existem e, acima de tudo, a mudança de mentalidade que sempre coloca no centro a pessoa humana, e não uma lógica meramente econômica, são um antídoto contra o individualismo reinante. Impõe-se, com palavras de São João Paulo II, colocar em prática “a imaginação da caridade”.
Todos sonhamos com uma sociedade justa. A situação de muitas sociedades se alterou depois deste longo sofrimento da humanidade. Se justiça é “dar a cada um o que é seu”, é necessário que os que têm a responsabilidade de tomar decisões na vida social exercitem essa “imaginação da caridade”. Porque, como dizia São Josemaria Escrivá, “convençam-se de que só com a justiça não resolverão nunca os grandes problemas da humanidade”. E acrescentava que a dignidade da pessoa humana exige mais: a caridade, que “é como um generoso exorbitar-se da justiça”. Caridade que supõe realizar bem o trabalho que nos é confiado, colocá-lo a serviço das necessidades dos outros, que neste momento são mais urgentes. Trabalhar bem é aproveitar o melhor possível as nossas capacidades – na família, na empresa, na escola, em todos os âmbitos dos afazeres humanos –, para manifestar proximidade e superar com amor o “distanciamento social” físico que as circunstâncias impõem.
Todos estamos chamados a viver a “imaginação da caridade”, para resolvermos juntos os desafios que este nosso mundo coloca diante de nós. Este mundo nosso que queremos melhorar, seguindo os passos Daquele que nos deu o exemplo de um esquecimento de si mesmo a ponto de dar a vida pelos outros.
Monsenhor Fernando Ocáriz é Prelado do Opus Dei.