No cotidiano, costumamos tratar da personalidade como uma qualificação humana que se constitui pouco a pouco, a partir da infância. A personalidade é o cerne do tratamento jurídico da pessoa e a torna apta a adquirir direitos e contrair obrigações, com um sentido diverso do nosso dia a dia.
Conforme nosso Código Civil, o Estatuto do Homem Comum, as pessoas físicas adquirem sua personalidade no nascimento com vida; as pessoas jurídicas, no registro de seus atos constitutivos no Cartório de Registro Civil ou na Junta Comercial. O que isso quer dizer? Quer dizer que a personalidade civil diz respeito a pessoas humanas – conhecidas também como pessoas naturais ou pessoas físicas – e a pessoas jurídicas – criações jurídicas fictícias existentes ao nosso redor, das quais se pode citar o mercado ou a escola.
Há quem diga que o Direito atribui uma existência às pessoas, mas isso não é correto; o Direito não determina a existência, mas atribui à existência uma especial proteção. Juridicamente, a personalidade determina essa proteção à singularidade da pessoa como titular de direitos, obrigações e interesses; todavia, isso não significa que os que não têm personalidade não têm direitos, obrigações e interesses. Se o mercado não se registra na Junta Comercial, não deixa de ser o mercado e ter direitos ou obrigações, ainda que, sem os registros, careça de proteção. Se é possível raciocinar assim com uma criação jurídica fictícia, ainda mais com uma pessoa fisicamente existente, de vida intrauterina. Ela não deixa de existir e ser pessoa porque o Direito só lhe atribui personalidade ao nascer com vida.
A personalidade juridicamente atribuída apenas leva a um reconhecimento de uma situação concreta. De toda forma, a existência não é o produto de teorias ou interpretações jurídicas. O nascituro é pessoa humana, merecedora de inquestionável salvaguarda de sua dignidade. A vida é inviolável e se protege desde a concepção. Parece afirmar o óbvio, mas chama a atenção notar o crescimento de um discurso que busca fazer prevalecer um relativismo da vida em prol de uma escolha ou um determinismo econômico-social. Há quem busque relativizar a salvaguarda de direitos e de interesses do nascituro com uma manipulação jurídico-política para revisão da punibilidade pelo aborto e uma relativização da questão a partir da leitura de que o nascituro não tem personalidade e, portanto, direitos imediatos. Aborto é crime, independentemente de escolhas políticas, e qualquer defesa que negue a vida plena ao nascituro, a partir de um discurso relativista, deve ser refutado.
Costuma-se entender juridicamente que o nascituro não tem direitos, mas expectativa de direitos; não tem personalidade até o seu nascimento com vida. Não obstante, isso não permite negar o fato de que vida é vida. Claro que os esparsos dispositivos do Código Civil focam a mera proteção patrimonial do nascituro, seu direito à doação ou à sucessão, mas a vida humana deve continuar incondicionada do ponto de vista civil ou criminal, a qualquer momento, desde a concepção.
Atribuições e teorias jurídicas não têm o condão de determinar o que é ou não é uma pessoa humana, e uma valoração feita pelo próprio ser humano não pode permitir violar a vida de outrem, seja ela intrauterina ou não. O nascituro é ser humano vivente, cujos interesses e direitos devem ser sempre social e moralmente reconhecidos e salvaguardados; ato contínuo, juridicamente inatacáveis.
Se esparsas previsões legais do Código Civil não enaltecem adequadamente a vida humana na proteção de direitos e interesses e levam a relativizações ou o aspecto da punibilidade de um crime vem à tona e rediscussão como mera escolha materna, então é preciso “em defesa de seus interesses, considerar o nascituro já nascido” (tradução livre do latim: “nascituro pro jam nato habetur, quando de ejus commodo agitur”), em linha com o velho ensinamento romano. Não permitamos que interpretações jurídicas limitem a defesa da vida, especialmente da vida do nascituro, e reafirmemos, aos quatro cantos, a inviolável dignidade do nascituro, com o consequente dever de seus genitores ao alimento e ao cuidado para a mais plena proteção da vida humana.
Crisleine Yamaji é advogada, doutora em Direito Civil e professora de Direito Privado. E-mail: direitosedeveresosaopaulo@gmail.com