Comentamos anteriormente – “Engenharia comportamental e COVID-19” – sobre a importância de medidas amplas – governamentais – no controle e valorização de posturas e comportamentos coletivos que mirassem o bem-estar coletivo. Campanhas informativas indicando o valor do isolamento social, higiene, cuidado consigo e com o outro são formas de apostar na chamada “aprendizagem por observação”, que influencia e molda nossos comportamentos.
Há, porém, outro aspecto que gostaríamos de pontuar: concepção de “povo”.
Passados mais de um ano de enfrentamento da pandemia, somos obrigados a encarar as dificuldades inerentes. Idas e vindas nas medidas de isolamento, períodos de lockdown nos quais se restringe ainda mais as interações, diretrizes conflitantes entre cidades vizinhas, questões econômicas (pobreza), primeira, segunda, terceira(?) ondas… Tudo dificulta uma resposta homogênea e sistematizada de enfrentamento.
É nesse ponto que esbarramos na concepção de “povo”.
Já sabíamos – e não nos escandalizamos – que o Brasil é multicultural, fragmentado, contendo dezenas de “brasis” dentro de si. O “gigante colosso” desafia governantes a pensar formas comuns de enfrentamento em regiões tão distintas como o Sudeste (urbano), o pampa gaúcho (rural) ou o interior da Amazônia (rural, mas distinto), por exemplo. Além das questões territoriais (espaciais), há questões climáticas e ambientais que escancararam nossa “ignorância” geográfica. Concretamente, respondemos à pandemia não como “povo”, mas com miríade quase infinita de possibilidades.
O fato de mostrar evidências de que não agimos como “povo” foi das que mais me chocaram. Perceber que a “mesma” língua não garante a construção identitária deve ser, contudo, ponto de partida para questões profundas e promissoras. O que favorece, de fato, a concepção de “povo”? Como estimular a “concordância” diante de objetivos comuns e ultrapassar posturas grupais fincadas em concepções individualistas?
Em uma das páginas mais emblemáticas da literatura teológica contemporânea, Luigi Giussani (em “Deixar marcas na história do mundo: novos passos da experiência cristã”. São Paulo, SP: Companhia Ilimitada, 2019) nos faz entender quais elementos são indispensáveis à constituição de um “povo”. Partilhar circunstâncias geradoras, de um ideal comum surgido como resposta ao enfrentamento a essas circunstâncias, ferramentas para alcançar tal ideal e, sobretudo, fidelidade mútua em vista da promoção desse ideal são os geradores de um povo. Além disso, “Se o ‘nós’ do povo entra na definição do ‘eu’, o eu identificando-se com a vida e o ideal do povo alcança sua maior maturidade, como reconhecimento de seu destino pessoal e totalidade de sua afetividade. Sendo assim, sem amizade, ou seja, sem afirmação gratuita e recíproca do destino comum, não existe povo” (Idem).
Encontramos as mesmas ideias sobre o povo, com palavras pouco diferentes, na mais recente encíclica do Papa Francisco, a Fratelli tutti (FT, 158ss). As circunstâncias geradoras comuns estão postas, mas só os simples estão enxergando isso.
Dener Luiz da Silva é professor de Psicologia na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).