Corpus Christi: a Festa de Deus

A Solenidade de Corpus Christi, que celebramos solenemente e com grande júbilo na quinta-feira passada, possui uma qualidade que a distingue das demais festas de nosso ano litúrgico: na sua origem histórica, não está tanto a iniciativa de uma corrente teológica ou de uma comissão de liturgistas, quanto uma sequência de acontecimentos em que se nota claramente a intervenção divina.

Em 1263, o jovem padre alemão Pedro de Praga rezava a missa na cidade de Bolsena, na Itália, enquanto nutria dúvidas sobre a presença real de Jesus Cristo na Eucaristia. Mal havia ele pronunciado a consagração, a hóstia consagrada começou a verter sangue sobre suas mãos, o corporal e o altar. Perplexo, o sacerdote dirigiu-se imediatamente à cidade vizinha de Orvieto, onde o Papa Urbano IV então residia. O Pontífice ordenou, então, uma investigação imediata – e quando os fatos foram confirmados, ele lembrou-se de uma monja que conhecera décadas antes, quando ainda era arquidiácono, na Bélgica: Juliana de Liège (1192-1258).

Juliana ficara órfã ainda menina, e fora educada pelas irmãs agostinianas do convento-leprosário de Mont Cornillon, onde adquirira uma notável cultura teológica. Mas Juliana se destacava sobretudo por sua intensa vida de oração e devoção à Santíssima Eucaristia: fazia frequentes adorações, durante as quais, aos 16 anos, começou a ter experiências místicas em que via uma esplendorosa lua cheia, traspassada de uma faixa es- cura – simbolizando, respectivamente, a glória da Igreja e a ausência de uma festa litúrgica dedicada ao Santíssimo Sacra- mento. Juliana guardou tudo isso em seu coração por 20 anos (assim como Maria cf. Lc 2,19.51), até que resolveu comunicar suas impressões a seu confessor e alguns religiosos de confiança – entre eles o jovem diácono Tiago Pantaleão de Troyes, futuro Papa Urbano IV.

Considerando, então, o milagre de Bolsena que tinha diante dos olhos, e as visões que Juliana lhe confidenciara anos antes, o então Papa Urbano IV decidiu instituir uma festa anual dedicada especificamente ao Santíssimo Sacramento, e convocou os maiores teólogos da Igreja para escrever os textos litúrgicos – entre eles São Tomás de Aquino e São Boaventura, dois grandes doutores da Igreja. Chegado o dia da apresentação dos trabalhos, Tomás foi escolhido para começar – mas bastou ele ler seu hino Lauda Sion que Frei Boaventura, comovido com a pérola que ouvira, imediatamente destruiu o texto que ele próprio havia escrito (pois, disse ele, sua consciência jamais o deixaria tranquilo se colocasse qualquer empe- cilho à difusão de um tal tesouro). E os hinos tomistas de Corpus Christi – ou seja, o Adoro te Devote, o Lauda Sion e o Pange Lingua – são realmente obras-primas em que se fundem teologia e poesia (Bento XVI, Audiência Geral, 17/11/2010).

A teologia desses hinos se manifesta na riqueza de verdades de fé que eles conseguem expressar em poucas palavras, inspirando nossa devoção: que o pão e o vinho consagrados deixam de ser pão e vinho, e se tornam carne e sangue de Cristo (Dogma datur christianis...); que nossa inteligência e nossos sentidos não conseguem alcançar estas coisas, mas que a fé na palavra de Jesus deve nos levar a acreditar firmemente na Presença Real (Visus tactus gustus in te fallitur…); que Cristo está presente inteiro em cada minúsculo fragmento do pão, em cada gota do vinho (Fracto demum sacramento…).

A poesia de um texto, no entanto, envolve sua sonoridade, sua métrica e rimas – por isso é que toda “poesia traduzida, usualmente, é menos agradável que na língua original” (“O Trivium – As artes liberais da Lógica, da Gramática e da Retórica”, Irmã Miriam-Joseph, p. 49). As ressonâncias aliterativas e rítmicas do trecho “Vérbum cáro pánem vérum vérbo cárnem éfficit”, por exemplo, acabam não sendo refletidas na tradução “A Palavra do Deus vivo transformou (…) o pão (…) no seu Corpo”. Hoje em dia, de todo modo, pode-se facilmente encontrar versões bilíngues destes hinos, na internet, que nos permitem entender o significado e saborear a poesia.

Digamos, então, a Nosso Senhor Eucarístico, a cada vez que participarmos da missa: “Meu Senhor e meu Deus!”.

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