‘Dai-lhes vós mesmos de comer’

A caminhada do cristão é repleta de altos e baixos, alegrias e tristezas, sabores e dissabores, e que devem nos impelir a trilhar o bom caminho. Porém, vez ou outra, falamos o que não devemos, fazemos o que deveríamos rejeitar, acabamos por nos desviar de tal trilha e, quando nos damos conta, nos recobramos da necessidade de retomar o passo. Neste aspecto, o tempo da Quaresma, que se iniciou na Quarta-feira de Cinzas, apresenta este caráter peculiar de verdadeiro balanço de nossas vidas. Nesta perspectiva, a profecia de Joel é eminente ao destacar a necessidade de uma conversão interior e não superficial, uma atitude de verdadeira e íntima renovação com o Senhor, um olhar abrangente que extrapole os limites da aparência e atinja as fibras mais profundas de nosso ser: “Rasgai o coração, e não as vestes; voltai para o Senhor, vosso Deus” (Jl 2,13).

A conversão para com Deus também atinge os irmãos, visto que nossas ações não são isoladas do mundo, mas sempre resvalam na pessoa do outro. Assim, a Campanha da Fraternidade (CF) é uma iniciativa perspicaz no intuito de nos conscientizar sobre como nossas ações têm impactos significativos na vida das pessoas. Em 2023, a CF visa a descerrar nossos olhos para uma das mais latentes mazelas sociais: a fome. Com o tema “Fraternidade e Fome” e o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16), somos impulsionados a, a partir do Evangelho, nos perguntarmos o que temos nós a ver com isso? Diante da pandemia que a aldeia global está superando, como não nos lembrarmos das cenas lastimáveis de multidões em filas para receber pedaços de ossos ou que se humilhavam nas ruas por um prato de comida? 

Mas, em meio a tanta injustiça, como foi bom ver muitos irmãos e irmãs, muitas comunidades, acolherem tal desafio para si e atenderem, dentro de suas possibilidades, a tais situações de verdadeiro descarte social por meio de ações concretas que visavam a minorar tamanhas desigualdades. Contudo, engana-se quem pensa que está tudo superado. Ainda são notórios os efeitos deletérios de algo que foi agravado com a recente pandemia. Muitas são as causas da fome no País que é considerado o celeiro do mundo, mas a CF 2023 vem também refletir as possibilidades para se acolher, investir, estimular, reconhecer e mobilizar esforços para transpor tais disparidades.

Do mesmo modo, dar de comer a quem tem fome ultrapassa a ação de partilharmos do que temos para com os outros materialmente, o que é bom, mas também implica olharmos para nossos irmãos e irmãs e partilharmos o que não é material a partir da ótica de Jesus, como nossa atenção, afeto, respeito e esperança. O apóstolo São Paulo afirma que todos “somos embaixadores de Cristo” (2Cor 5,20), e, se de fato somos, devemos testemunhar este Deus de quem todos temos fome e sede e, assim, sermos fonte de verdadeira partilha aos irmãos. 

Além do mais, dentro da dinâmica quaresmal, que o jejum, a esmola e a oração nos permitam uma aproximação mais íntima ao Senhor, a transformar as estruturas do velho homem e a irradiar junto aos demais irmãos uma autêntica mudança de vida. E que, nesta Quaresma, com os olhos fixos em Jesus e inspirados pela CF 2023, compreendamos que no mundo somos a alentadora partilha, o milagre do amor.

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