Na capital paulista, ‘dar de comer a quem tem fome’ poderá resultar em multa

Sob a justificativa de estabelecer ‘protocolos de segurança alimentar’ para a distribuição de alimentos a pessoas em situação de vulnerabilidade, projeto de lei em tramitação na Câmara Municipal prevê multa a pessoas e instituições que realizem esta obra de misericórdia sem a autorização do poder público

Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO

A Câmara Municipal de São Paulo aprovou em 1ª votação na sessão plenária da quarta-feira, 26, o Projeto de Lei (PL) 445/2023, de autoria do vereador Rubinho Nunes (União Brasil), que estabelece “protocolos de segurança alimentar para as Organizações Não Governamentais (ONGs), entidades assemelhadas e quaisquer cidadãos ou grupos de pessoas que desejem doar alimentos a moradores em situação de vulnerabilidade social na cidade de São Paulo”.

Na prática, caso a medida seja aprovada em segunda votação pelos parlamentares e sancionada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), qualquer pessoa, instituição ou grupo que faça esta distribuição terá de se adequar a uma série de normas e obter autorizações do poder público. No caso de descumprimento, a multa pode chegar a até 500 (quinhentas) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESP), atualmente algo em torno de R$ 17.680.

A aprovação em 1º turno do Projeto de Lei (PL) 445/2023 ocorreu em chamada “votação simbólica”, quando há a menção ao número do projeto, um breve descritivo a respeito do que está sendo deliberado, e se a maioria dos vereadores permanecerem como estão no momento da leitura o texto é aprovado.

Por enquanto, as pessoas e instituições que realizam a distribuição de alimentos podem continuar a fazê-lo sem risco de ser multadas. O PL 445/2023 ainda precisará ser votado em 2º turno e caso seja aprovado pela maioria dos vereadores só entrará em vigor se for sancionado por Ricardo Nunes. O União Brasil, partido de Rubinho Nunes, é da base aliada do prefeito na Câmara Municipal.

O QUE PODERÁ MUDAR?

Atualmente, não há qualquer normativa ou restrição na legislação municipal para que, de modo individual ou em grupo, as pessoas façam doações de refeições – lanches ou marmitex, por exemplo – para alguém que esteja em situação de vulnerabilidade.

Na cidade de São Paulo, assim o fazem regularmente muitos grupos ligados à Igreja Católica, como a Pastoral do Povo da Rua e o Sefras – Ação Social Franciscana, e também algumas paróquias que mobilizam fiéis para esse tipo de ação de maneira diária, semanal ou mensal.

Caso o PL se torne lei, uma série de obrigações serão impostas a quem deseja dar refeições a pessoas em situação de vulnerabilidade, tornando todo o processo bem mais burocrático.

No caso das pessoas físicas, entre as obrigações estão: limpar toda a área onde será realizada a distribuição dos alimentos e disponibilizar tendas, mesas, cadeiras, talheres, guardanapos e demais ferramentas necessárias à alimentação segura e digna; obter autorizações da Secretaria Municipal de Subprefeituras e da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) antes de realizar o ato; cadastrar junto à SMADS todos os voluntários presentes à ação.

Estas mesmas obrigações devem ser cumpridas pelas entidades e ONGs, as quais também deverão: possuir Razão social da entidade registrada e reconhecida por órgãos competentes do município; apresentar de documento atualizado com informações sobre o quadro administrativo da entidade, com nomes e cargos dos membros e as devidas comprovações de identidade; possuir cadastro das pessoas em situação de vulnerabilidade social e informações atualizadas SMADS; e identificar os voluntários com crachá da entidade no momento da entrega do alimento. Além disso, as documentações apresentadas deverão ser autenticadas em cartório ou estar acompanhadas de atestado de veracidade.

Outra determinação que consta no PL 445/2023 é que os locais onde os alimentos serão preparados deverão passar por vistoria da Vigilância Sanitária.

Em nota à imprensa, a Prefeitura de São Paulo informou que “Projeto de Lei segue em discussão na Câmara Municipal de São Paulo e será analisado pelo prefeito caso seja aprovado em segunda votação”; e que “atualmente, não existe obrigação de TPU (Termo de Permissão de Uso) para entrega de alimentação às pessoas em situação de rua”.

DAR DE COMER A QUEM TEM FOME’

Dar de comer a quem tem fome é uma das 14 obras de misericórdia que a Igreja recomenda aos fiéis católicos, razão pela qual estes, de modo individual ou grupos, pastorais e movimentos a realizam em favor dos que mais necessitam.

A prática da misericórdia foi algo constante na vida de Jesus e nas recomendações que deu a seus discípulos. No Evangelho segundo Lucas, Cristo é enfático: “Sejam misericordiosos, assim como o Pai de vocês é misericordioso” (Lc 6,36). Também o evangelista Mateus lembra que Jesus, diante das multidões, afirmou que são “bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão a misericórdia” (Mt 5,7); e mais adiante, no anúncio do Juízo Final, assegurou que os justos serão salvos, terão a vida eterna, pois deram de comer a quem estava com fome; de beber a quem tinha sede; acolheram o estrangeiro, vestiram quem estava nu, cuidaram dos doentes e visitaram os que estavam presos (cf. Mt 25,31-46).

Entretanto, este gesto de caridade parece cada vez incomodar a alguns, como já alertava São João Paulo II, em 1980, na encíclica Dives in misericordia: “A mentalidade contemporânea, talvez mais do que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem” (DM 2).

Na carta apostólica Misericordia et misera, publicada em 2016, o Papa Francisco ressalta que “o mundo continua a gerar novas formas de pobreza espiritual e material, que comprometem a dignidade das pessoas. É por isso que a Igreja deve permanecer vigilante e pronta para individuar novas obras de misericórdia e implementá-las com generosidade e entusiasmo” (MM 19).

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3 Comentários
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Alessandro Carrion
Alessandro Carrion
3 meses atrás

Tive fome e me destes de comer…
Não, não, para…
Para alguns vereadores e até de moradores de São Paulo, essa fala de Jesus nunca existiu.
Esse PL é cruel, desumano e anticristão.

Isaac Fernandes Monteiro
Isaac Fernandes Monteiro
3 meses atrás

Que alternativa se dará aos moradores de rua de São Paulo com uma diminuição da Caridade em nome da Burocracia? Será que é melhor deixar os irmãos de rua buscarem alimento nas latas de lixo? Será que isso é mais digno e apresenta menos risco a saude deles?