Defesa da vida e amizade social

Em meio a aclamações nas ruas e congratulações vindas de vários países, em 4 de março último, a França se tornou o primeiro país do mundo a incluir o direito ao aborto em sua Constituição. A decisão foi tomada pelo Parlamento francês, com 780 votos a favor e 72 contra. Pesquisas indicam que 86% dos franceses apoiavam a constitucionalização do aborto. Contudo, a legislação francesa já permite o aborto desde 1975, graças a uma lei viabilizada por Simone Veil, figura proeminente da política francesa, alinhada à centro-direita.

A justificativa para a atual medida era o temor de um “retrocesso” da legislação, como aconteceu em países como os Estados Unidos, Hungria e Polônia. Contudo, os dados mostram que essa possibilidade era bastante remota na França. Tratou-se mais de um gesto simbólico, motivado em parte pela necessidade de o governo conseguir um expressivo apoio parlamentar em alguma de suas propostas, qualquer que fosse.

Estamos diante de uma evidente hegemonia do que São João Paulo II chamou de “cultura da morte”, na Evangelium vitae (EV). O termo talvez pareça excessivo aos nossos olhos… Afinal, as feministas que estavam comemorando a decisão não pensavam no direito de matar seus filhos, mas, sim, naquele de decidir sobre o próprio corpo. Uma das características mais fundamentais da “cultura da morte” é exatamente sua capacidade de ocultar a morte.

Para usar termos em voga, cria-se uma dissociação cognitiva, um negacionismo, que se recusa a perceber a vida humana na criança ainda não nascida. Não importa o quanto a genética mostre que, a partir da fecundação, uma nova identidade humana foi criada, a partir da combinação dos genes de pai e mãe; ou que tanto a experiência cotidiana das mães quanto os avanços da medicina fetal mostrem sempre mais que o feto já é um ser humano que vive, se desenvolve e sente. Essa vida está ocultada por um negacionismo que pode nascer de uma situação desesperada da gestante ou por uma miopia ideológica da militância. Por isso, pode ser mais fácil perceber que estamos diante de uma “cultura do descarte”, como a denomina o Papa Francisco, pois toda a nossa sociedade está mergulhada numa postura de descarte – e a morte é o resultado do descarte da vida (cf. Discurso ao Corpo Diplomático, 13/ jan/2014).

Mas o aborto não é causa, é consequência da cultura da morte (ou do descarte). Uma luta contra o aborto que não enfrente as raízes dessa cultura só irá adiar o inevitável. Trata-se de uma posição humana que não é capaz de reconhecer o amor e a gratuidade; ter esperança nas dificuldades; ir ao encontro do outro, quando esse não corresponde aos próprios interesses; dialogar com o diferente… Apesar de dizer de si exatamente o contrário. Mas como se opor a isso de modo efetivo?

São João Paulo II escreveu: “Em virtude da participação na missão real de Cristo, o apoio e a promoção da vida humana devem atuar-se por meio do serviço da caridade, que se exprime no testemunho pessoal, nas diversas formas de voluntariado, na animação social e no compromisso político” (EV 87). Para entender a falsidade de uma posição cultural que nega a realidade, a pessoa precisa descobrir-se amada, tem que experimentar a segurança e a esperança, que nascem do encontro com uma posição amiga no momento de crise. Quem já se esforçou para evitar um aborto intencional sabe o quanto uma presença amiga e solidária é fundamental para dar esperança e força à mãe em dificuldade.

Na verdade, a defesa da vida mais radical (no sentido de ir às raízes do problema) se manifesta como “amizade social”. É verdade que as pesquisas de opinião indicam que a população brasileira é majoritariamente contrária à facilitação do aborto no País, mas a coincidência entre os acontecimentos na França e a Campanha da Fraternidade deste ano nos indica um caminho a seguir.

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