Desenvolvimento da doutrina

No editorial da semana passada, tratávamos da unidade da Igreja e de como ela vem sendo ameaçada por dois tipos opostos de erro: de um lado, o apego distorcido à “Tradição” à custa do respeito à hierarquia e da comunhão eclesiástica; e de outro, a ideia de que é possível manter a comunhão eclesiástica desvinculada, ou mesmo com rupturas com a legítima Tradição e o Depósito da Fé. Hoje, quiséramos tratar de um tema conexo e igualmente importante: a questão do desenvolvimento da doutrina, da adaptação pedagógica dos ensinamentos que a Igreja conserva intactos desde os Apóstolos à mentalidade e ao contexto do mundo de hoje.

O tema é atual, pois tem sido invocado para defender posições extremadas a respeito da autoridade do Santo Padre. Há quem caia no erro de dizer, por exemplo, que o Papa não teria poder para fazer qualquer alteração nos ritos litúrgicos – mas o próprio Concílio de Trento reconhece a possibilidade de “estabelecer ou mudar o que julgar mais conveniente (…), segundo a variedade de situações, tempos e lugares” (DS 1.728), desde que seja preservada a substância dos sacramentos.

Aliás, o aggiornamento, a adaptação da linguagem da Igreja ao mundo moderno, era o grande propósito do Vaticano II: em seu discurso de abertura, São João XXIII dizia que o objetivo do Concílio era conseguir que o depósito sagrado da doutrina cristã fosse ensinado de forma mais eficaz. Não se tratava de ensinar coisas substancialmente novas (a substância do ‘depositum fidei’ devia se transmitida pura e íntegrasem atenuações nem subterfúgios), mas de adaptar a linguagem para o homem moderno, alterando a formulação com que são enunciadas as verdades da fé, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. E nesse sentido, o Vaticano II foi uma graça tremenda para a Igreja: quem se decide a ir direto às fontes e ler em primeira mão os documentos como a Lumen gentium, a Dei Verbum ou a Gaudium et spes só pode ficar admirado de quão belos e quão católicos eles são.

Também em tema de desenvolvimento de doutrina, portanto, há dois exageros opostos que precisamos evitar, para preservarmos a unidade da Igreja. Por um lado, seria errado negar a possibilidade de qualquer desenvolvimento, tratando a doutrina católica como um “bloco monolítico”. Na história da Igreja, vemos que os dogmas de que Jesus é “consubstancial” (homoousios) ao Pai ou que Maria é “Mãe de Deus” (Theotókos) foram definidos como fruto de um processo de amadurecimento eclesial, inspirado pelo Espírito Santo (cf. Jo 16,12-13). Os Apóstolos não utilizavam esta linguagem: eles ensinavam, sim, que Jesus era verdadeiro Deus (cf. Jo 10,30; 20,28), e que Jesus era verdadeiro homem (cf. 1Jo 1,1-3), mas a articulação conceitual desses dogmas ainda era incompleta. Como explicava Leo Trese: “Com o passar dos anos, os homens usarão da inteligência que Deus lhes deu para examinar, comparar e estudar as verdades reveladas por Cristo. O depósito da verdade cristã, como um botão que se abre, irá desdobrando-se ante a meditação e o exame das grandes inteligências de cada geração” (A fé explicada).

Por outro lado, seria igualmente incorreto acreditar que a doutrina pode-se desenvolver para qualquer sentido, inclusive anulando ou indo contra aquilo que antes fazia parte do Depósito da Fé. Assim como o próprio Cristo não veio abolir a Lei, mas levá-la à perfeição, assim também o legítimo desenvolvimento visa a apenas a fazer desabrochar ou amadurecer o que já estava contido na Fé dos Apóstolos. Como dizia São John Henry Newman, os desenvolvimentos “que apenas contradizem e invertem o curso de doutrina que foi desenvolvimento antes deles, e do qual eles brotam, são certamente corrompidos” (Essay on the Development of Christian Doctrine).

Fiquemos, então, com o ensinamento de São Vicente de Lérins, que o Papa Francisco costuma citar: o dogma cristão segue algumas leis de progresso, de modo a ser consolidado pelos anos, dilatado pelo tempo, e sublimado pelas eras – e, no entanto, permanece sempre incorrupto e íntegro, completo e perfeito.

guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Veja todos os comentários