Bem-aventurados os puros

O ano é 1965. Um tradicional colégio católico norte-americano de rapazes promove um baile com as moças do colégio de freiras. Animados com a ocasião, os garotos, de paletó e gravata, trocam olhares furtivos com as garotas, sentadas do outro lado do ginásio, de vestido e penteado impecáveis. Quando, porém, se anuncia a entrada do sacerdote, o ginásio inteiro emudece, e o padre, baixinho, ranzinza e de língua presa, começa a esbravejar sobre os perigos da luxúria – “Uma besta imunda que mora dentro de cada um de vocês, e que quer arrastá-los ao fogo eterno do inferno, onde serão consumidos por serpentes grotescas!!!”… Terminado o “sermão”, o padre ainda pergunta se alguém tem alguma dúvida – mas, obviamente, ninguém ousa falar nada, para não despertar ainda mais o furor do pregador.

A cena é fictícia e tirada de um filme dos anos 1980, mas é ilustrativa de uma certa mentalidade bastante arraigada nos homens e mulheres de nosso tempo. Em linhas gerais, nessa mentalidade moderna, Deus é tratado como um rival e competidor do homem, e seus mandamentos, como expressos pela tradição da Igreja, são concebidos como um cerceamento arbitrário da liberdade e do florescimento pessoal. É como se o diretor do filme nos quisesse dizer: “A Igreja quer castrar e domesticar os fiéis, e por isso é que usa de padres e freiras recalcados e ridículos para ensinar que tudo é pecado”.

Pensamentos como esse não são raros de encontrar na vida cotidiana – mas o que pouca gente sabe é que eles têm sua origem distante em certas correntes desviantes da teologia católica, que, distanciando-se da tradição, começaram a enfatizar excessivamente o poder absoluto de Deus, separando-o de sua sabedoria e bondade. Assim, teólogos como Scotus e Ockham começaram a ensinar que os dez mandamentos eram vinculantes simplesmente “porque Deus quis”, e que poderiam inclusive ser alterados a qualquer momento, se Deus assim quisesse.

Ora, é claro que essa concepção voluntarista de Deus só poderia gerar uma reação contrária – e foi o que aconteceu. Gerou-se, na filosofia moderna, a tendência de enxergar Deus e o homem como rivais. Assim, Feurbach dizia que “O não a Deus é o sim ao homem”, e Marx chamava a religião de “o ópio do povo”. De forma mais radical, Nietzsche proclamava que “Deus está morto, e nós o matamos”, e Jean-Paul Sartre argumentava que Deus logicamente não podia existir, pois sua existência implicaria o cancelamento da minha liberdade pessoal.

A verdadeira doutrina cristã, no entanto, sempre ensinou que Deus é todo-poderoso, mas não arbitrário (cf. Catecismo, no 271), e que Deus só se ofende conosco quando fazemos algo que vai contra nosso próprio bem (São Tomás, Summa contra gentiles, 3.122.2). Já quase na época dos Apóstolos, Santo Irineu resumia a relação entre Deus e o homem dizendo que Gloria Dei homo vivens – a glória de Deus consiste em que o homem desabroche seu potencial, vivendo plenamente.

Se, portanto, a Igreja pede ao homem a castidade, ela o faz porque, sendo “perita em humanidade”, sabe que uma vida em que a razão e a temperança não governem as pulsões instintivas do corpo e as paixões da alma humana acaba redundando em egoísmo e infelicidade. E nem sequer é preciso ser cristão para enxergar isso: os sábios de cada época, de Platão a Mahatma Gandhi, já defendiam o autocontrole em matéria sexual. Gandhi, de fato, afirmava ser “o cúmulo da ignorância acreditar que o ato sexual é uma função independente necessária, como dormir ou comer”, e explicava que aqueles que achavam que a castidade era para uns poucos iluminados “falavam sem terem experimentado as possibilidades do autocontrole”, pois “assim como a verdade não é para uns poucos escolhidos, mas para toda a humanidade, também o autocontrole não é para alguns ‘Mahatmas’, mas para toda a humanidade”.

Aos homens e mulheres de nossa época pós-Revolução Sexual, façamo-los ver o mesmo convite que fez a Agostinho “a casta dignidade da Continência, serene e alegre sem desmesura”: “Estendia-me as mãos piedosas, cheias de uma multidão de boas obras, para me receber e abraçar. Encontravam-se aí meninos e meninas, grande número de jovens e pessoas de todas as idades, dignas viúvas, virgens idosas. Em todas elas não era estéril a continência, e sim mãe fecunda das alegrias geradas de ti, Senhor seu esposo. E a Continência ria de mim e ao mesmo tempo me exortava, como se dissesse: ‘Lança-te em Deus, e não temas. Ele não fugirá de ti, e não caíras. Atira-te sem reservas, e ele te receberá e te curará’” (Confissões, 8.11.27).

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