Deus não é nosso rival

Escrevíamos num recente editorial sobre a felicidade que um dos desafios da evangelização atual é desvincular o Cristianismo, no imaginário popular, das “supostas proibições arbitrárias, que cerceariam nossa liberdade e impediriam a tranquila fruição da vida” (JOSP, 3.351; 23-29/06/2021). De fato, uma característica marcante de nossos tempos é a “fuga defensiva de Deus”, tido como um rival que “quereria privar os homens do seu espaço vital, da sua autonomia, do seu poder; um rival que (…) impõe limites à nossa vida e não nos permite dispor da existência a nosso bel-prazer” (Francisco Faus, Procurar, encontrar e amar a Cristo, Cultor de Livros, 2018; cf. Bento XVI, Homilia na Epifania de 2011).

O Papa Francisco fala dessa tendência de fuga de Deus: “Alguns creem-se livres quando caminham à margem de Deus, sem se dar conta de que ficam existencialmente órfãos, desamparados, sem um lar para onde possam sempre voltar. Deixam de ser peregrinos para se transformarem em errantes, que giram indefinidamente ao redor de si mesmos, sem chegar a lado nenhum” (Evangelii gaudium, 170)

 Essa mentalidade, em rigor, nos acompanha desde a Queda: a instigação a comer do fruto proibido mais não era do que a tentação de ocupar o lugar de Deus, decidindo por nós mesmos da bondade ou malícia das coisas. A tentação da serpente, pai da mentira, convenceu nossos primeiros pais de que Deus era seu rival, que os pretendia privar de um bem superior (cf. Gn 3,4-5).

Contrariamente a essas concepções de rivalidade, no entanto, a tradição católica, apoiada no relato da sarça ardente e em Deus que se define como “Aquele que é”, desenvolveu a noção de que Deus se relaciona com suas criaturas de forma não competitiva: sendo o fundamento de tudo o que existe, dizia Santo Tomás de Aquino, Deus não é o ens summum (o mais elevado dentre os diversos seres), mas o ipsum esse (o próprio ato de ser). Esta intuição teológica é fundamental porque “uma das marcas mais evidentes das naturezas finitas e mundanas é que elas existem de forma mutuamente excludente” – as coisas finitas, precisamente como de-finidas, opõem-se reciprocamente entre si. Mas Deus, a própria fonte do ser, não é um ser entre vários – e assim pode se aproximar de suas criaturas sem que elas sejam destruídas ou comprometidas em sua integridade.

Contrastemos esta teologia com as visões pagãs, segundo as quais a relação de Deus com o cosmo seria sempre marcada por uma nota de violência ou submissão: as teomaquias ou guerras entre os deuses mitológicos, ou a agressiva imposição de uma forma na amorfa matéria primeva. Pense-se aqui no mito da jovem Sêmele, mãe de Dionísio: seduzida por Zeus, que lhe aparecera em forma de águia, ela lhe pede revelar-lhe sua glória divina – e é incinerada pela transcendência da visão.

Para nós, cristãos, a lógica é exatamente inversa: Deus, “Aquele que é”, não rivaliza com suas criaturas – antes, é o próprio fundamento no qual “vivemos, nos movemos e existimos” (cf. Ex 3; At 17,28). A presença de Deus leva a sarça a arder em fogo, mas sem se consumir. 

A mesma presença leva São Paulo a exclamar, ardoroso: “Eu vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim!” (Gl 2,20). Ousará alguém negar que a literatura paulina transborda da inteligência, da fibra e do caráter peculiares deste homem? Tomado pelo verdadeiro Deus, ele se tornava mais completamente si próprio: ardia em chamas, sem se destruir. Dizia Santo Irineu de Lião, já no século II: gloria Dei homo vivens (“a glória de Deus é que o homem viva em plenitude”) – Deus não quer nossa repressão, mas nosso mais consumado afloramento. 

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