Continuando nossa sequência de reflexões sobre os quatro principais documentos do Concílio Vaticano II, gostaríamos de hoje refletir sobre a Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), a “Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de nosso tempo”. Uma primeira peculiaridade importante a notarmos é que a Gaudium et Spes é a única a se definir como “constituição pastoral” (e não dogmática). Vale dizer, o propósito principal do documento não é apresentar alguma doutrina essencial de nossa fé (dogma), mas, sim, refletir sobre o cumprimento da missão da Igreja de salvação das almas, no contexto específico do mundo moderno.
Ao focar na ação pastoral da Igreja no mundo moderno, a Gaudium et Spes é um marco de grande mudança de postura em suas relações com a cultura e a sociedade. Efetivamente, fazia já alguns séculos que, em razão de vários motivos históricos (alguns dos quais tinham sua razão de ser), a Igreja vinha assumindo uma atitude defensiva em relação ao mundo. Desde a Reforma Protestante, as sociedades do Ocidente cristão foram sacudidas por uma revolução atrás de outra: o Iluminismo racionalista e antropocentrista, a Revolução Industrial e seus impactos nas relações familiares e sociais, as ideologias do secularismo, materialismo, ateísmo, comunismo e socialismo, e depois as duas grandes Guerras Mundiais… Como consequência dessas transformações sociais, a infraestrutura cultural que durante séculos mantivera a Cristandade vinha sendo cada vez mais demolida em suas bases.
Nos anos que antecederam o Concílio, no entanto, esta postura de fechamento claramente não estava conseguindo preservar as bases cristãs da sociedade, que cada vez mais via a Igreja como alheia a suas aspirações e angústias. Alguns teólogos perspicazes, do porte de Wojtyla, Ratzinger, de Lubac e Congar perceberam que era hora de mudar de estratégia: a Igreja devia verdadeiramente evangelizar a cultura, e não se tornar mera espectadora de uma humanidade que caminhava a seu largo.
Com grande sabedoria, os padres conciliares diagnosticaram o chamado dilema moderno (GS 9): por um lado, um desenvolvimento vertiginoso das ciências e da técnica, e por outro, a carência de um igual desenvolvimento no campo moral, dos valores últimos e sentido da existência. A Modernidade, de fato, caracteriza-se pelo abandono da visão de mundo cristã, segundo a qual todo o mundo ao nosso redor existe como criatura de um Criador transcendente e infinitamente amoroso e bom, que decidiu trazer as coisas à existência num ato livre de transbordamento de bem-querer. Nesta cosmovisão cristã, todas as criaturas são dotadas de sentido e bondade próprias, como reflexo de sua autoria divina – e o homem, em particular, encontra o fundamento de sua dignidade única no fato de ser imagem de Deus.
Na Modernidade, porém, a visão padrão é a de que Deus não existe; de que “Num universo de elétrons e genes egoístas, de forças físicas cegas e replicação genética, algumas pessoas vão se machucar, outras vão ter sorte, e você não vai encontrar nenhuma rima ou razão para isso, e nem alguma justiça (…), nenhum sentido ou propósito, nenhum bem ou mal, e nada além da impiedosa indiferença.” (Richard Dawkins, Deus, um delírio). O valor das coisas não é mais medido em referência à sua origem divina, mas conforme a utilidade que pode trazer.
No entanto, o homem moderno continua tendo as aspirações espirituais que são próprias de seu ser – e apesar de todo o nosso conforte tecnológico, sentimos uma imensa fome espiritual. Passamos a vida correndo atrás de cada moda e prazer do momento, mas chegamos a nossa casa vazios, ao final de cada noitada.
Para este problema, o documento sabiamente recorda ao homem moderno que “o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente”. É Jesus Cristo a única solução possível para o drama da existência humana: hoje como ontem, somente Nele pode-se dar resposta adequada às questões da comunidade humana, de justiça social, do matrimônio e das relações econômicas.
Bebamos, portanto, da sabedoria cristocêntrica da Gaudium et Spes e de todo o Concílio, e compreendamos que não há salvação para o mundo moderno fora de Cristo.