O passado recente da vida pública de nosso país, marcado pela acirrada disputa eleitoral e pelas diversas tensões após a proclamação do resultado, deu proeminência ao tema do ativismo judicial, e em particular da judicialização da política. De fato, já faz alguns anos que, por diversos fatores, vem crescendo a atuação de magistrados e tribunais brasileiros na arena política.
Os Três Poderes que estruturam nossa República, e que deveriam atuar harmonicamente, dentro de seus respectivos limites, têm tido cada vez mais atritos, dando margem à abertura de “exceções” a garantias legais em nome da defesa da democracia.
A violação das “regras do jogo”, de fato, é muitas vezes praticada ao argumento de proteção de interesses maiores – e assim, por exemplo, um juiz de nossa Suprema Corte pôde afirmar uns anos atrás, num evento oficial do Poder Judiciário, que, por não ser eleito e ter um grau de independência maior, não deve satisfação, depois de investido do cargo, a absolutamente mais ninguém. Este tipo de independência absoluta, no entanto, que seria exercida por “alguns homens [que], em virtude de um conhecimento mais profundo das leis do desenvolvimento da sociedade (…), estão isentos de erro”, é incompatível com o Império da Lei, e tende a levar ao totalitarismo (João Paulo II, Centesimus annus, n. 44). O próprio Catecismo da Igreja Católica opta “que todo o poder seja equilibrado por outros poderes e outras competências que o mantenham no seu justo limite”, vigorando o Estado de Direito, “no qual é soberana a Lei, e não a vontade arbitrária dos homens” (n. 1904).
O apelo à legalidade, ao respeito às regras do jogo, não pode, porém, ser entendido como um revanchismo, um amordaçamento do Judiciário. Pelo contrário, a verdadeira pacificação social exige respeito total às suas atribuições e competências próprias: seu poder-dever de dizer o direito deve ser assegurado, assim como o livre acesso dos cidadãos aos órgãos judiciais. Assim como pedia Goffredo Teles Júnior, em sua célebre Carta aos Brasileiros, queremos sim “o direito de ter Juízes e Tribunais independentes, com prerrogativas que os tornem refratários a injunções de qualquer ordem” – mas no mesmo passo aspiramos também ao “direito de ter uma imprensa livre; o direito de fruir das obras de arte e cultura, sem cortes ou restrições; o direito de exprimir o pensamento, sem qualquer censura, ressalvadas as penas legalmente previstas, para os crimes de calúnia, difamação e injúria”.
Reconhecemos, sem qualquer hesitação, que o Presidente legitimamente eleito e os Magistrados da Suprema Corte são os mais altos funcionários, respectivamente, nos quadros administrativos e judicantes da Nação. Mas, ainda junto com Goffredo, negamos que qualquer um deles seja o mais alto Poder de um País. Proclamamos a soberania da Constituição.
O Estado de Direito: “Eis o vínculo desta dignidade de que gozamos na República, eis o fundamento da liberdade, eis a fonte da justiça: a mente, a alma, a opinião comum e o sentimento da Nação estão assentados nas leis. (…) Somos todos, enfim, escravos das leis, precisamente para que possamos ser livres” (Cícero, Pro Cluentio, 53). Concluamos ecoando o final daquela Carta aos Brasileiros: “Fiquemos apenas com o essencial. O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito. A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já”.