‘Linguagem neutra’?

O tema da ‘linguagem neutra’, que já há alguns anos vem gerando calorosas discussões no mundo norte-americano e europeu, parece agora ter aterrissado em terras brasileiras. Segundo a revista Veja desta semana (nº 2773), houve em 2021 mais de 2 milhões de tweets com pronomes neutros, e as pesquisas pelo tema no Google cresceram mais de 3.200% em relação a 2019.

A questão vem sendo alardeada por diversos veículos de comunicação como uma pretensa proposta humanitária, para corrigir um alegado machismo ou preconceito linguístico, que estaria imbricado na própria estrutura de nosso idioma. Segundo estes veículos, o nosso plural genérico (pelo qual uma expressão como “todos os alunos” pode significar assim um grupo exclusivamente masculino, como também um grupo misto) seria o resultado da “adoção do masculino para o plural”, como consequência da suposta “abolição do [gênero] neutro”, na transição do latim para o português arcaico.

Estas afirmações, no entanto, são completamente divorciadas da realidade. Em sua consagrada “Gramática Latina”, Napoleão Mendes de Almeida ensina que apenas possuíam o gênero neutro, no latim, os substantivos que designavam seres inanimados (nº 38) – e, portanto, sua aplicação para seres humanos nunca foi “abolida”, simplesmente porque nunca existiu. E, quanto ao gênero dos adjetivos que qualificavam simultaneamente substantivos de gêneros diversos, não havia uma regra única: a flexão variava conforme o adjetivo fosse usado como predicativo do sujeito ou adjunto adnominal (nº 85).

Por outro lado, é verdade que em português não reconhecemos mais um gênero neutro, nem sequer para seres inanimados – mas isso não aconteceu porque “decidiu-se pela abolição” (como se algum linguista malévolo tivesse um tal poder), senão devido a um descentralizado e orgânico processo de evolução fonética, pelo qual as terminações latinas tipicamente masculina e neutra (respectivamente, -us e -um) convergiram em -u. É dizer: os masculinos como hortus (jardim) e os neutros como atrium (sala) em certo momento convergiram para hortu, atriu – e ao longo de mais alguns séculos, este -u acabou se consolidando no atual -o de horto e átrio. Do ponto de vista histórico, portanto, o nosso -o final não é um sinal especificamente masculino – antes, ele absorve tanto o gênero masculino quanto o neutro do latim.

As propostas de “linguagem neutra”, como se vê, se apoiam em valorações historicamente falsas sobre o plural coletivo do português. Mas porventura não seria o caso, ainda assim, de decretar a alteração de nossa gramática, em nome da inclusão, e contra as discriminações?

Ora, há basicamente duas propostas para efetivar a tal “neutralidade”: a primeira delas propõe eliminar todas as atuais marcas de gênero (ele, ela), e criar ex nihilo um único gênero (elu ou ile), aplicável indistintamente a todo substantivo. Difícil, aqui, é explicar como se pode, em nome da inclusão, excluir os gêneros atualmente existentes… Até mesmo alguns defensores da linguagem neutra reconhecem este ponto: “Como mulher, quero continuar sendo chamada no feminino”

E quanto à outra proposta – a de adicionar, aos atuais masculino e feminino, um tertium quid, para não “discriminar” aqueles que não se encaixam nas categorias de homem e mulher? O problema, aqui, é que, segundo os próprios ativistas da diversidade sexual, os chamados “não binários” se subdividem em dezenas de classes distintas entre si (em Nova Iorque já se reconhecem 31 variedades…) – e subordiná-los forçadamente sob um único gênero gramatical seria categorizá-los sob um crivo distinto do dos homens mulheres (e assim discriminá-los). Isso para não falar que os próprios termos “não binário” e “neutro” são, etimologicamente, definições apofáticas ou por exclusão: não dizem o que a pessoa supostamente é, mas sim o que ela não é – e por isso mesmo parecem-nos altamente discriminatórios e excludentes.

De modo que, quer por serem desprovidas de um verdadeiro fundamento histórico-linguístico, quer por acarretarem, por sua própria natureza, a criação de novas discriminações e/ou exclusões, estas novas propostas parecem-nos tudo, menos “neutras”.

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