Há uma cena na multipremiada cinebiografia de São Tomás More, O homem que não vendeu sua alma (1966), que bem ilustra por que nós, católicos, o temos por Padroeiro dos governantes e dos homens públicos. Reunido à mesa com sua família logo após uma frustrada tentativa de conciliação com o rei Henrique VIII – que terminara com o monarca apartando-se furioso de seu chanceler, ante a recusa deste último a dobrar sua consciência em benefício da luxúria real –, More recebe a visita inesperada de seu antigo pupilo, Richard Rich, que confessa estar recebendo propostas de ganhos e vantagens em troca do vazamento de informações sigilosas aos que queriam a cabeça de More. Rich tenta, então, barganhar sua “fidelidade” ao antigo mestre em troca de um cargo, mas More se recusa terminantemente a vender-se, e o jovem se retira dando a entender que consumará a traição.
Nesse ponto, os parentes todos de More se exaltam, e mandam que o chanceler detenha o moço: “Ele é mau! Ele é perigoso! É um traidor!”. More recusa: “Não existe nenhuma lei contra isso”, e seu genro William Roper objeta: “Existe sim: a Lei de Deus!”. “Pois bem,” diz More, “que Deus o prenda. Enquanto ele não tiver quebrado nenhuma lei, ele tem o direito de ir e vir livremente, mesmo que seja o Diabo em pessoa!”
Roper, que é também um profissional do direito, se exaspera: “Quer dizer agora que você dá ao Diabo o Benefício da Lei?”; “Sim!”, responde More, “E você faria o quê? Cortaria um atalho na lei para perseguir o Diabo?”; E o genro insiste: “Sim! Eu derrubaria até a última lei da Inglaterra para fazer isso!”.
Nesse momento, São Tomás More revela toda a grandeza de seu espírito público: “Ah é, Roper? E quando a última lei estivesse por terra, e o Diabo se voltasse e começasse a lhe perseguir, onde você se esconderia, com todas as leis arrasadas? Esta nação é uma floresta toda plantada com leis, de uma costa a outra (leis dos homens, não de Deus) – e se derrubá-las todas, você acha mesmo que conseguiria permanecer de pé nos ventos que soprariam então? Sim: eu daria ao Diabo o Benefício da Lei, a bem de minha própria segurança!”
Este Benefício da Lei é o que hoje em dia chamamos de “princípio do ‘Estado de Direito’, no qual é soberana a Lei, e não a vontade arbitrária dos homens” (Catecismo 1904). De fato, a doutrina da Igreja recomenda que, em qualquer comunidade política, “todo poder seja equilibrado por outros poderes e outras competências que o mantenham no seu justo limite” (Ibidem).
Não se trata, aqui, de ser antidemocrático, nem de incitar a insubordinação às instituições da República: nós, cristãos, reconhecemos e respeitamos as autoridades públicas – e inclusive rezamos, a cada Adoração Eucarística, pedindo que Deus derrame as suas bençãos sobre todas as pessoas constituídas em dignidade, para que governem com justiça. O ponto é que estas mesmas autoridades públicas não devem proceder de maneira despótica, como se estivessem acima da Lei (cf. Catecismo 1902).
Nem sequer em nome da “defesa da democracia” se podem violar os direitos fundamentais dos cidadãos, assegurados pela Lei – pois “Uma autêntica democracia só é possível num Estado de Direito” (São João Paulo II, Centesimus Annus, n. 46). Como dizia Marco Túlio Cícero, o império da Lei é “o vínculo desta dignidade de que fruímos na República, o fundamento da liberdade, a fonte da equidade”: pois “somos todos escravos das leis, precisamente para que possamos ser livres” (Pro Cluentio, 53).
Duas gerações atrás, e em meio às incertezas do regime militar, o grande Goffredo da Silva Telles Junior proclamava ao mundo sua Carta aos Brasileiros, para relegar o “testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito, apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade”.
Também hoje, portanto, ecoemos as palavras do Professor Goffredo: “O que queremos é a ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito. A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já!”