A Cruz de Cristo: mistério do silêncio e do abandono 

Reprodução da obra de Ticiano em Monastério Espanhol

O evento cruz é “terrivelmente” silencioso. Não como aquele silêncio de um dia em que se aproveita para o descanso em um feriado qualquer, mas, sobretudo, de um “silêncio do silêncio”. 

O silêncio não é a ausência do barulho, aliás, como sabemos, o silêncio, por experiência própria, está cheio de barulhos, como escreve Henri Jozef Machiel Nouwen, no livro “Oração” (Loyola, 5ª edição, São Paulo, 1999, p.25). Portanto, dizer que este evento é marcado pelo silêncio, não quer dizer que se trate de algo normal, afinal, o silêncio da Cruz “tornou-se um distúrbio real. Houve uma época em que o silêncio era normal; mas hoje o barulho é o estado normal das coisas e o silêncio, por mais estanho que se pareça, tornou-se o verdadeiro distúrbio”, escreve o mesmo autor no já referido livro (p.26). A partir disso, podemos entender por que a oração se tornou tão difícil: porque as pessoas que experimentam o silêncio desse modo só poderão ter dificuldades com a oração. 

A Cruz de Cristo é o mistério do abandono porque o silêncio do coração abandonado vai além de todo homem; é o silêncio do Cristo abandonado, entregue nas mãos dos homens. É o silêncio que nos leva às portas do abandono, já revelado pela Sagrada Escritura, de maneira particular, pelos livros dos Profetas e dos Salmos. É o abandono vivido por tantas pessoas que passam por experiências de dor e purificação, que experimentam seu calvário no cotidiano de suas vidas, por meio de momentos de solidão, sofrimento, aridez e abandono. O abandono traz consigo a prova de que o sofrimento não se exprime facilmente com palavras, pois elas a transformam em uma realidade dramática. No mistério do abandono de Jesus, somos convidados, por meio da oração pessoal, a entrarmos em um conhecimento mais vivo de sua Paixão. 

A Cruz de Cristo nos leva ao mistério do Crucificado; por isso, é importante compreendermos que a “cruz não é e não pode ser amada. Isso pelo fato de que somente o Crucificado provê a libertação que transforma o mundo, pois não teme mais a morte”, como diz Jurgen Moltmann em “O Deus Crucificado” (Academia Cristã, São Paulo, 2011, p.17). Entendemos com isso que não podemos ir à Cruz sem Jesus crucificado nela. A teologia da cruz é a teologia do crucificado; isto é: a morte de Jesus na cruz é centro de toda teologia; não é o único tema da teologia, mas é a principal via de acesso aos demais temas de interesse dela (idem, p.252). Tão bem nos lembra ainda Hans Urs von Balthasar em “Meditar como Cristãos” (Santuário, Aparecida, 2004, p.27): “Não podemos parar na cruz, precisamos transpô-la, isto é, precisamos olhar, sentir e amar o amor consumado nela”.

Jesus se abandona nos braços do Pai com um abandono que brada ao céu: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). São Charles de Foucauld assim refletia em “Luz no Deserto: Retiros Notas e Correspondências” (Cultor de Livros, São Paulo, 2018, p.27): “Estas palavras ensinam-nos duas coisas: primeiro, que é preciso se dirigir a Deus com uma simplicidade absoluta; todos os pensamentos, as nossas queixas e tudo mais. Dirigir-lhe nos momentos de alegria os nossos gritos de alegria; nos momentos de dor, nossos lamentos; segundo, devemos empregar as mesmas palavras de Jesus para falar com o Pai: devemos nos utilizarmos dos momentos mais solenes da tentação do deserto e da cruz”. 

Enfim, a Cruz de Cristo atrai para si todos os que oram, pois no Cristo abandonado nos é revelado o mistério da cruz e de nossa redenção. Neste esteio, o que devemos pedir hoje no silêncio da oração diante da cruz?  Eu responderia: devemos pedir o que sentimos e nada mais do que isso. Peçamos ao Senhor que nos ajude a viver o silêncio da dor e do abandono amparados pelo mistério de sua Morte e Ressurreição que se descortina aos nossos olhos. 

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