O evangelista Mateus reproduz um exemplo de fé que se dá entre Jesus e uma mulher cananeia. Na cena, Jesus está a caminho de Tiro e Sidônia, região pagã, e se depara com uma mulher que lhe implora a cura de sua filha, atormentada por um demônio. Essa mulher rompe as barreiras físicas, religiosas e culturais. Isso pouco importa diante do sofrimento da sua filha atormentada, porém seu ato não é feito de maneira jeitosa, ou seja, ela se dirige a Jesus aos gritos. Naquela época, e até hoje, sabemos que o grito é sinal de desespero, dor, medo, pedido extremo de socorro. É o grito de mulheres indígenas que se desesperam ao ver rios sendo contaminados por resíduos de garimpo ilegal, ou pela derrubada, também ilegal, de vastas áreas de floresta. É o grito de mulheres que tiveram que deixar suas casas para morar em barracos improvisados, ou mesmo nas ruas da cidade, porque não podem pagar o aluguel. A exemplo destas, tantas outras estão gritando, ao revelar o quanto estão incomodadas com as dores daqueles que estão ao seu redor.
Diante dos gritos, Jesus permanece em silêncio. Logo os discípulos pedem que Jesus tome posição e dizem o que Ele tem que fazer: “Manda embora essa mulher, pois ela vem gritando atrás de nós”. Os discípulos estão incomodados. De fato, há grito que nos incomoda, porque nos questiona e exige de nós uma posição frente ao problema apresentado. Ao aproximar-se de Jesus, não é só a boca que fala, mas todo o corpo daquela mulher que se prostra diante Dele e começa a implorar: “Senhor, socorre-me”. Diz o Papa Francisco “A força interior desta mulher, que permite superar qualquer obstáculo, deve ser procurada no seu amor materno e na confiança de que Jesus pode atender o seu pedido. Isto faz-me pensar na força das mulheres. Com sua fortaleza, são capazes de obter coisas grandiosas. Conhecemos tantas! Podemos dizer que é o amor que move a fé e, por seu lado, a fé torna-se prêmio do amor”.
A cena da aproximação da mulher vai se tornando mais intensa e Jesus toma posição, mas não como queriam os seus discípulos. Ele não se sente incomodado e se prontifica a dialogar com aquela que, a princípio, não tinha direito a receber os benefícios do “enviado somente às ovelhas perdidas da casa de Israel”. Para um pagão, a palavra de Jesus parece ser muito dura: “Não fica bem tirar o pão dos filhos para jogá-los aos cachorrinhos”. De fato, os hebreus chamavam de “cães” as pessoas de outras raças (os pagãos). Jesus fala que a prioridade são os filhos, os hebreus. Observando a fala de Jesus e comparando com o que acontece na sua casa, a mulher concorda que o pão é prioritariamente destinado às crianças, mas isso não significa que os cachorrinhos devam morrer de fome. Eles se alimentam das migalhas que caem da mesa. É como se ela dissesse “se não pode dar o pão inteiro, dê-nos as migalhas, somos os últimos da fila e as migalhas que vem de vós nos são suficientes para nos alimentar e nos curar”.
O modo como Jesus conduziu o diálogo fez com que a mulher, considerada pagã, desse um salto de qualidade em sua fé, superando preconceitos judaicos em relação aos estrangeiros e mulheres. “Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como desejas”. Fé semelhante à do soldado pagão que causou admiração em Jesus (Mt 8,10) e bem diferente da dos discípulos medrosos e de pouca fé (Mt 8,26). “E a filha ficou curada”, foi liberta do demônio que tanto a incomodava. Que demônio é esse? Talvez o demônio que atormentava todo o seu povo: a discriminação, o preconceito, o tratamento como cachorros que viviam de migalhas, daquilo que sobrava. A fé constante, perseverante e incansável daquela mulher culminou com o resgate da dignidade da sua filha, do seu povo. Posteriormente, o apóstolo Pedro, ao admitir o primeiro pagão na Igreja, disse: “Em verdade, reconheço que Deus não faz distinção de pessoas, mas em toda nação lhe é agradável aquele que o teme e fizer o que é justo” (At 10,34-35).
A atitude de Jesus diante da fé da mulher cananeia nos ajuda a compreender que é urgente o diálogo fraterno com outros cristãos, com os membros de outras tradições religiosas e com os sem religião, para não cairmos na tentação do fundamentalismo e da autorreferencialidade, como nos adverte o Papa Francisco. É preciso sair dos limites dos muros que nos cercam para dar as mãos a homens e mulheres comprometidos, independentemente de suas crenças religiosas, com a cultura da paz, da justiça e do cuidado com a Casa Comum. Nós não estamos sós: “Multidões incalculáveis de outros homens creem em Deus, o invocam talvez mais intensamente do que nós; um dia, Ele achará a maneira – neste mundo ou depois dele – de nos reunir como irmãos reconciliados ao redor da grande mesa do seu Reino” (Frei Raniero Cantalamessa).