Justiça e pastoral

Não há como separar a justiça da misericórdia. “Em Deus, justiça é misericórdia e misericórdia é justiça”, disse o Papa Francisco em uma missa na Casa Santa Marta, em fevereiro de 2017. “Jesus fala da verdade sem dizer ‘pode’ ou ‘não pode’”, lembrou, na ocasião. “Jesus jamais negocia a verdade com casuística. Ele simplesmente a diz como é.”

A recente revisão do Código de Direito Canônico, a maior desde 1983, publicada pelo Papa Francisco na semana passada, caminha nesse mesmo sentido: o de apresentar as coisas como elas são, por mais desagradáveis que sejam, e de conduzir a Igreja às respostas mais adequadas e proporcionais. A revisão é resultado de um longo caminho de consultas a especialistas nas leis da Igreja, a qual começou no pontificado do Papa Bento XVI.

Essa reforma mostra que, assim como não existe contraposição entre justiça e misericórdia, pois elas andam de mãos dadas, tampouco há como separar o Direito da pastoral – conforme descreveu Dom Filippo Iannone, Presidente do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, na apresentação das novidades no Livro VI do Código, no dia 1°. Essa é a parte do Código que trata de delitos e penas no Direito Canônico.

Na constituição apostólica Pascite gregem Dei, que apresenta tal revisão, o Papa Francisco imprime uma grande ênfase pastoral nas disposições. Diz que “o Pastor é chamado a exercitar seu dever por meio de conselhos, persuasões, exemplos, mas também com autoridade e poder sagrado”, afirma, citando a constituição dogmática Lumen gentium, do Concílio Vaticano II.

As normas não servem só para punir. Até mesmo no Direito Penal elas existem para manifestar “a materna misericórdia da Igreja, que sabe ter sempre como finalidade a salvação das almas”, diz o Santo Padre. As normas servem para que os pastores, especialmente os bispos, saibam como conduzir seu rebanho e aplicar melhor, “com justiça e misericórdia”, as penas que sejam necessárias para orientar o caminho dos fiéis, acrescentou.

Esse espírito pastoral marca fortemente o pontificado de Francisco. Desde sua eleição, ele vem pedindo que Cristo, Bom Pastor, saia ao encontro do seu povo, por meio da Igreja. Esta “Igreja em saída” coloca todas as suas estruturas – inclusive as de governo – a serviço da missão. Francisco vem buscando imprimir esse espírito pastoral inclusive na Cúria Romana, por meio de suas reformas.

As “rápidas mudanças” de nossos contextos culturais e sociais exigem da Igreja atualização constante também em suas regras. Com espírito pastoral, no entanto, a lei passa a ser um “ágil instrumento terapêutico e corretivo, a aplicar tempestivamente e com caritas pastoralis (‘amor pastoral’) para prevenir males maiores e sanar as feridas causadas pela fraqueza humana”, diz o documento.

Por mais que sejam raras e desagradáveis, as sanções e penas previstas na lei permitem proteger os membros mais vulneráveis da Igreja, como os menores de idade, por exemplo. Elas limitam abusos de poder e mau uso dos bens que servem à missão de evangelizar, em grande parte sustentados pelo povo de Deus. Elas esclarecem quais são os desvios a serem evitados na liturgia. Permitem que, onde a ordem for violada, possa ser restabelecida. Ao mesmo tempo, impedem que punições exageradas ou legalistas fechem as portas para o perdão, a reconciliação, a expiação e a redenção.

Uma visão pastoral da lei permite que a disciplina não seja autorreferencial, mas instrumental, para o bem de toda a comunidade e para a missão da Igreja. Como dizia Santo Tomás de Aquino, “a justiça sem piedade conduz à crueldade, mas a misericórdia sem justiça, por sua vez, leva à dissolução da ordem”. As leis da Igreja criam e mantêm sua ordem social. Visam a atingir e conservar a comunhão entre seus membros e, de forma coerente, infundir a sua misericórdia.

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