Logo do Jornal O São Paulo Logo do Jornal O São Paulo

Mas antes de morrer, vi as estrelas! 

“Numa noite, enquanto passeava, / a velha tartaruga deu um passo / maior que a perna e caiu / com o casco virado de cabeça pra baixo. / Um sapo gritou para ela: “Que tola! / Essas escapadas custam a vida…” /– eu sei – respondeu ela – / mas antes de morrer, vi as estrelas”. 

O poeta, escritor e jornalista italiano Trilussa, pseudônimo anagramático de Carlo Alberto Salustri (1871-1950), tinha a capacidade de traduzir o cotidiano, a partir de imagens comuns, em uma poesia com leveza, ironia, mas não sem deixar de tratar os temas com uma certa profundidade que lhe era peculiar, provocando-nos a reflexão, como no poema acima intitulado “A Tartaruga”. 

Quando li pela primeira vez o poema de Trilussa, chamou-me a atenção o uso do adjetivo “velha” para qualificar a tartaruga. Por que qualificá-la assim? Ignoro as suas razões. Porém, o adjetivo nos leva a pensar na longevidade desta tartaruga que, apesar do tempo já vivido, teve a ousadia de se arriscar a dar um “salto maior que a perna e cair”. O poeta deixa claro que não podemos dar um salto sem nenhuma consequência. A ousadia da tartaruga não significou o abandono da virtude da prudência. Ela tinha uma clareza do que buscava e os seus riscos. 

No entanto, o salto que a levou a cair nos provoca a pensar que até mesmo para uma velha tartaruga é sempre possível ter a ousadia, ainda que para ela e para nós custe a vida confortável que levamos até o momento, para vislumbrarmos a beleza e nos convertermos verdadeiramente. Esse salto “simbólico” da fé – que não tem idade, diga-se de passagem – vale a pena, apesar de todos os sapos que temos ao nosso redor a gritar que somos uns tolos! 

O poeta, ainda, nos concede mais uma informação valiosa sobre a velha tartaruga. Ele nos diz: “Numa noite, enquanto passeava”. Um pouco de conhecimento sobre as tartarugas terrestres nos diz que elas são animais de hábitos diurnos. Mas, para o poeta, isso pouco importa; importa sim o verbo usado: passear. E, ainda, importa nos colocar em uma cena noturna em movimento, capaz de vislumbrarmos as estrelas. 

Enquanto “passeamos”, entre muitas coisas que são possíveis, uma delas é a possibilidade de contemplar. Contemplamos a beleza das construções, as igrejas históricas, o modo de falar e viver das pessoas ou a beleza natural de praias ou de montanhas. O fato é que nos colocamos em outra disposição de espírito. De certa maneira, ficamos mais leves – na contramão da vida corrida, marcada pela eficiência – e abertos ao que é bom, belo e verdadeiro que pode nos tocar profundamente. 

Muitas vezes, os sapos ao nosso redor sabem o que significa essa conversão de vida. Sabem perfeitamente o que significa abandonar o “homem velho”, fechado em si mesmo, indiferente. Sabem que a tartaruga não deu um salto maior do que a perna e caiu. Ela tinha plena consciência de que para elevar seus olhos aos céus, a única alternativa era cair e ficar de casco virado para baixo, ainda que isso custasse sua velha vida. Daí com a sutileza associada a uma “velha astúcia”, os sapos tentam colocar dúvidas à sua convicção: “Essas escapadas custam a vida…”. Já ouvimos isso de outra maneira, registrada no diálogo da serpente com Eva. 

Não tenhamos medo de sermos a velha tartaruga do poema de Trilussa, ainda que surjam sapos a dizer que essas escapadas custarão a nossa velha vida e sejamos chamados de tolos. Já sabemos a resposta a ser dada: Eu sei, mas antes de morrer, verei as estrelas! 

Na era da inteligência artificial – como nos advertiu o Papa Francisco em sua última encíclica Dilexit nos – não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano”. Sejamos atrevidos em nossa oração, “e o Senhor te transformará de pessimista em otimista; de tímido em audaz; de acanhado de espírito em homem de fé, em apóstolo!”, nos ensina São Josemaría Escrivá. 

É preciso escrever outros poemas para despertar os corações adormecidos ou convencidos por sapos maledicentes de que a vida não vale a pena. 

Deixe um comentário