O laicismo e a cidadania

Os tempos contemporâneos são marcados, entre outras características, pela forte pretensão de excluir Deus da ordem social e política, como se fosse uma realidade meramente privada, íntima, sem efeitos sociais ou públicos. Essa atitude, chamada de laicismo, é um equívoco não pequeno, que provoca dá-nos sobre todo o tecido social – e nada tem a ver com a legítima e necessária laicidade.

O caráter laico do Estado, que a Igreja acolhe e defende, significa o reconhecimento de uma legítima autonomia das realidades temporais. “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, ensinou-nos Jesus Cristo, que ao longo da sua vida condenou toda ideia de messianismo político. Ordem temporal e ordem espiritual não se confundem.

Agora, precisamente pelo fato de que Estado e Igreja têm esferas próprias de competência e atuação, o Estado laico não é sinônimo de Estado ateu. Caso o poder público abraçasse uma postura ateia ou mesmo agnóstica, além de ferir a isenção característica da laicidade, impor à coletividade uma perspectiva reducionista da vida social e limitar o âmbito da cidadania, estaria privando a ordem temporal do seu sentido mais profundo e reduzindo o bem comum a fatores meramente materiais, o que vulnerabiliza e contradiz a própria dignidade humana.

As grandes causas humanitárias sempre tiveram profunda inspiração numa visão de pessoa e de mundo aberta a Deus. Não foi apenas que “valores religiosos” inspiraram a atuação cívica e política de muitas mulheres e homens. Havia, como motivação de fundo, a compreensão de que o ser humano não é mero ser material, mas pessoa, com alma e corpo, com uma dignidade que deve ser respeitada em todas as circunstâncias históricas. É o que se observa, por exemplo, na causa da abolição da escravatura, na defesa do voto feminino e na luta contra a tortura.

A compreensão transcendente da vida, não meramente materialista, desvela e fortalece o mais genuíno sentido das causas sociais, além de ser fundamento firme para a própria liberdade religiosa. O humano, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, sempre exige abertura à transcendência. O caráter laico do Estado não pode excluir, portanto, Deus da vida social e política de uma comunidade.

Por isso, os católicos, ao exercerem seus direitos e deveres políticos, não colocam sua fé entre parênteses, como se ela fosse obstáculo para uma cidadania saudável, que respeita os demais. A maior contribuição que um cristão pode dar à coletividade é se comportar de fato como cristão na vida pública, sem abdicar de sua identidade e de suas convicções. Ao votar, ao participar da vida pública, ao se dedicar de forma mais direta a alguma tarefa relativa à coletividade, o católico deve viver as virtudes teologais– fé, esperança e caridade – e as virtudes cardeais – prudência, justiça, fortaleza e temperança.

Jesus Cristo convida-nos a ser sal e luz do mundo. Não é para ser sal e luz apenas na própria casa, na própria família. A vocação cristã tem uma dimensão de ser- viço a todas as pessoas. E não serviríamos bem se na esfera pública privássemos os outros daquilo que temos de mais valioso. Por exemplo, defender a compreensão cristã sobre a família – as luzes que Jesus Cristo trouxe sobre essa fundamental realidade humana e social – não é impor nada a ninguém, como se o exercício de

nossa cidadania estivesse privando direitos de outras pessoas. Ao contrário, significa contribuir para que a resposta estatal, por meio das leis e das políticas públicas, seja a mais humana possível, a mais respeitosa para com todos os cidadãos.

Há muitas soluções políticas possíveis, plenamente legítimas, perante as diversas questões sociais e políticas. Não há uma única resposta católica. Não há uma cartilha católica com soluções fixas, predeterminadas. O que há é uma realidade humana (necessariamente aberta à transcendência) a ser respeitada, valorizada, acolhida, defendida em todas as fases e circunstâncias. E a luz da fé é uma poderosa contribuição nessa grande aventura da convivência humana.

Deus nos criou livres e responsáveis, fez-nos colaboradores da criação. Quer contar com a nossa responsabilidade, com a nossa criatividade, com as nossas ideias e também com a nossa capacidade de escutar os outros. A construção das soluções políticas é responsabilidade de todos, com diálogo e respeito por todos. E, nessa caminhada conjunta, queremos – devemos! – participar de corpo e alma, com tudo o que levamos no coração.

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