O risco de um novo Pombal

Vai já mais de um século desde que em 1922 chegaram ao Brasil os primeiros religiosos da ordem camiliana, liderados pelo Padre Inocente Radrizzan, com a missão de trazer ao nosso País uma obra inspirada pelo carisma de seu fundador, São Camilo de Lellis (1550-1614). Inspirados por sua fé e ajudados por pessoas de boa vontade, esses religiosos foram gradualmente construindo o que veio a ser a atual rede São Camilo, que hoje conta com três unidades na capital e mais de 750 leitos, cerca de 6 mil colaboradores assistenciais e administrativos e 7,9 mil médicos cadastrados. Os recursos provenientes de seu atendimento permitem subsidiar outros 33 hospitais administrados pela Sociedade Beneficente São Camilo, que oferecem atendimento público em todo o País.

Nas últimas semanas, no entanto, o São Camilo se viu arrastado para os holofotes da grande mídia, e intimado a responder a inquérito no MPSP e à ação civil perante o Tribunal de Justiça de São Paulo. O motivo? Uma mulher solicitou ao hospital a implantação de um DIU, e recebeu da médica a resposta de que o procedimento – que além do efeito contraceptivo também pode evitar a nidação e causar aborto – não poderia ser realizado na instituição, que possui identidade e inspiração católicas. Até aqui, nada de novo (esta sempre a política dos hospitais católicos quanto à contracepção artificial, tanto para homens quanto para mulheres, como sabe qualquer pessoa que conheça minimamente a doutrina da Igreja) – mas esta paciente é influencer no X (antigo Twitter) e seu post sobre o assunto logo viralizou. Já no dia seguinte, ela se ria da “quantidade de entrevista[s]” que dera sobre a questão; e também a deputada estadual Andréa Werner (PSB) e a bancada feminista do PSOL na Câmara Municipal se movimentaram para instigar a instauração dos citados inquérito e ação civil.

O questionamento ao São Camilo invoca basicamente dois argumentos: de um lado, dizem que a diretriz do hospital viola a autonomia dos médicos; de outro, alegam que a garantia constitucional da inviolabilidade da liberdade de consciência (art. 5º, VI) só se aplicaria para pessoas físicas, e não para instituições. Acontece, porém, que o hospital não retirou dos médicos a autonomia para fornecerem intervenções contraceptivas – desde que não o falam com a infraestrutura do hospital. A própria influencier declarou ao portal VivaBem UOL que a médica que a atendeu ofereceu realizar o procedimento em seu consultório particular ou ainda a orientou a procurar outros médicos de seu convênio que atendam fora do São Camilo. E nem sequer cabe pretender que a liberdade de consciência não se estende ao hospital, como pessoa jurídica – pois no Brasil as cortes já estabeleceram que os direitos fundamentais dos indivíduos, como o direito à honra, podem ser reconhecidos às instituições, por extensão. No fundo, aliás, a pessoa jurídica é só uma abstração, e apenas possui existência concreta o indivíduo humano – como os fundadores ou administradores do hospital, que também devem ter sua liberdade de consciência protegida.

Mas e se não houvesse essa proteção constitucional à objeção de consciência? E se as leis obrigassem a prática de qualquer coisa em nome da “ciência”? Ora, as ciências empíricas são apenas uma área do saber entre outras; quando ela pretende esgotar o todo da realidade, sem dar espaço a considerações de outras disciplinas tais quais a antropologia, a filosofia, a ética, a teologia e a moral, abre-se margem a todo tipo de abuso e distorção. A Alemanha do Terceiro Reich, por exemplo, tinha a ciência médica mais avançada do mundo na época, e o nazismo com suas teorias eugenistas e “científicas” era particularmente popular entre a classe médica: a proporção de filiados ao partido de Hitler era sete vezes maior entre médicos do que na população geral. Daqui veio a Aktion T4 e suas centenas de milhares de eutanásias forçadas; daqui vieram o uso de seres humanos como cobaias em experimentos médicos “científicos”, daqui também veio o Holocausto e seus 6 milhões de vítimas judias…

Recusemos todo tipo de capitalização política e ideológica que viole a legítima identidade católica de uma instituição que há um século vem fazendo o bem a incontáveis pacientes. No passado, o anticlericalismo de um Marquês de Pombal, que em 1759 expulsou os jesuítas do Brasil, fez com que o País perdesse quase todos os seus professores da noite para o dia. Ai de nós se um novo Pombal decide “iluminar” nosso sistema de saúde!

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