O velho doente de Goya: um olhar de superação e catequese

Sergio Ricciuto Conte

Recentemente, numa visita a Madri, na Espanha, vi um painel muito interessante, que expunha a imagem de um rascunho de Goya, grande pintor espanhol, intitulado “Así suelen acabar los hombres útiles”. Que imagem! Um homem desconhecido, comum, velho, presumidamente pobre, despido de quase tudo, inclusive de saúde. Homem apoiado em duas muletas rudes e que tenta, a duras penas, se locomover. Estando o homem rascunhado estático no desenho, é possível ver o movimento lento, sofrido, mergulhado na dor, um arrastar pesaroso de si mesmo.

A dor em imagem. Eu sei o que é isso. Sim, eu sei, ainda que na periferia da debilidade física, eu pisei nos seus círculos indesejáveis. Sei o que é querer se movimentar mais rápido e não conseguir. Sei o que é tropeçar e depender da bengala para não cair, batendo-a no chão com força. Eu também sei o que é cair na frente de todos, quando a bengala já não é bastante para socorrer a fraqueza. Eu sei o que aquele homem sentia e imagino vivamente sua miséria.

Estava quase enveredando pelo caminho, sempre perigoso, da autopiedade – ainda que desproporcionalmente –, quando deixei de ver o corpo e olhei o rosto do velho homem. Tudo mudou em constrangedores e quase eternos segundos. É como se a luz da alegria partisse ao meio as trevas da tristeza. Talvez as fotografias não exibam de modo justo a elegância do desenho, mas dou testemunho fiel: o rosto do homem não era de sofrimento, mas de resignação, esperança e, ouso dizer, docilidade e conforto.

Dizem que os olhos são espelhos do coração. Em realmente os sendo, os do velho não eram os de quem sofre, mas de quem transcendeu a própria miséria. Olhar pacífico e enternecedor, olhar de quem transmite segurança na dúvida, coragem na adversidade, força na debilidade e mais um rosário de paradoxos benfazejos. Não um olhar qualquer, mas de quem enxerga o mundo muito além das aparências e não tem inclinação para as lamentações. Um olhar sem amargura, mas cheio de santificada tranquilidade.

Vi no olhar do velho de Goya a face do próprio Simeão, mestre da sabedoria, personificação da esperança. O velho homem de muletas muito me falou sobre saúde, força e fé. Falou também de resignação e de como nenhum sofrimento pode tirar a paz interior. A carne pode ser rasgada, os ossos esmagados, a dor excruciante, mas a ternura do coração há de imperar se houver no sulco indelével da fé, amiga da verdade, carvão em brasa da fogueira inapagável do amor. 

Em seu homem doente, Goya, talvez involuntariamente, exibiu poderosa catequese. Nisso também reside o encanto da verdadeira arte, a que comunica o Belo e grita a Verdade. Exagero? De modo algum. A arte que não traduz Beleza e Verdade não pode como tal ser considerada. A arte passa a ser mera crônica infeliz de visão míope da sua própria essência.

Voltei para a igreja da qual tinha saído. Era necessário. Lembrei que havia pedido para acelerar minha recuperação, mas esquecido de agradecer o sucesso da cirurgia. Um tropeção na mesma escadaria pouco antes da missa me fez mais inclinado a reclamar e pedir do que aceitar e agradecer.

Obrigado, Goya. Seu grafite e sua mão, seu talento, fizeram-me lembrar de quem eu sou e no que acredito. Escrevo para deixar o registro marmorizado na tábua do meu coração, muito mais doente e claudicante do que minha perna esquerda.

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