No artigo anterior (O niilismo, o utilitarismo e a perda progressiva da capacidade de amizade), refletimos sobre como a cultura ocidental valorizou a busca do útil em detrimento do belo, do bom e do verdadeiro, que eram os valores mais importantes da cultura clássica, dizendo que esses são valores relativos, diferentes para cada indivíduo, não universais e, portanto, o desejo de buscá-los não pode reunir os seres humanos, nem deve ser a coisa mais importante a fazer na vida. Em outras palavras, se cada indivíduo tem um conceito diferente do que é belo, bom e verdadeiro para si, então não é possível uma comunhão profunda entre cada ser humano; e cada um estaria sozinho na busca da própria felicidade, entendida como aquilo que é útil para si.
Essa mesma cultura afirmou ainda que a felicidade pode ser conquistada por quem consegue ter mais dinheiro e comprar mais coisas.
Um olhar mais detalhado sobre a condição real da sociedade atual tem revelado, porém, que não é bem assim. É ilustrativo a esse respeito o estudo do Prêmio Nobel de Economia Daniel Kahneman sobre a relação entre felicidade e salário. Sua equipe de pesquisadores entrevistou mais de 450 mil pessoas nos Estados Unidos para avaliar o bem-estar emocional (também chamado de experiência de felicidade), que se refere à qualidade de vida diária das pessoas e à frequência e intensidade de experiências de alegria e fascínio, em relação às experiências de ansiedade, tristeza, raiva ou distúrbios afetivos, e compará-lo com os valores de seus salários. Os resultados dessa e de outras pesquisas semelhantes mostraram que salários acima de um valor médio de 7,5 mil dólares (que equivale a um salário muito bom, mas não particularmente alto nos Estados Unidos) não aumentam a felicidade emocional. De fato, esse valor representa o limiar acima do qual não há melhora nas experiências que geram felicidade. Esses estudos descobriram ainda que os fatores mais associados ao bem-estar emocional foram: estar com os amigos, evitar dores e doenças e fazer coisas que trazem alegria à vida.
Outros estudos ainda, como o de Jordi Quoidbach, mostraram, inclusive, que salários muito altos aumentam a infelicidade e prejudicam a capacidade de apreciar as coisas da vida. Nesse mesmo sentido vão os resultados encontrados por uma pesquisa da Universidade de Harvard, que mapeou as condições de vida relacionadas à felicidade em um grupo de pessoas ao longo de 80 anos e descobriu que estar com amigos e fazer amizades fortes foi o fator mais importante para a saúde e a felicidade. Quem criou laços fortes com os outros era mais feliz e tinha mais saúde.
Em conclusão: amar e ser amado, e ter amigos é o que traz maior felicidade à vida. Pesquisas como essas vêm progressivamente mostrando que se pode mudar a cultura de uma sociedade, manipular a estrutura das relações entre os seres humanos, mas não é possível mudar a natureza humana, senão à custa de destruí-la. E não há dinheiro que compre o bem-estar material que conquiste o que o coração humano clama mais do que tudo: amar e ser amigo de alguém.
A experiência da amizade como fator constitutivo da natureza humana não é um ideal antropológico abstrato, tampouco uma utopia irrealizável, como denunciou Nietzsche ao refletir sobre a experiência da cultura que tinha diante dos olhos (artigo anterior). Pelo contrário, a importância da amizade tem sido reconhecida e relatada por muitos pensadores ao longo da história. Por isso, acreditamos ser útil para os dias de hoje nos debruçar sobre algumas reflexões e exemplos dessa experiência. A começar por aspectos evidenciados pela tradição grega, e esse será o tema do próximo artigo.
Ana Lydia Sawaya é doutora em Nutrição pela Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e atualmente é professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).