A misericórdia na renovação de Francisco

Sem avançar aqui propriamente no tema litúrgico, a nova tradução brasileira do Missal Romano (MR), muito fiel à terceira edição típica latina (2008), oferece linhas evolutivas quanto ao anúncio, à mística e à beleza da economia da misericórdia, respectivamente, querigma, mistagogia e via pulchritudinis (cf. Evangelii gaudium, EG 164-167). De fato, as coletas do “Segundo Domingo da Páscoa ou Domingo da Divina Misericórdia” (p. 321) e da Missa votiva “A Misericórdia de Deus” (p 1.133), guardam uma profunda similaridade entre si: a primeira invoca a divina misericórdia “para que todos compreendam melhor o Batismo que os lavou, o Espírito que os regenerou, e o sangue que os redimiu”. A segunda, retirada do contexto batismal e mistagógico da oitava pascal, suplica: “Aumentai benévolo a fé do povo a vós consagrado, para que todos compreendam melhor o amor que os criou, o sangue que os redimiu e o Espírito que os regenerou”.

Tal conexão constitui um dado objetivo e irretorquível da eucologia menor do MR: a exaltação da divina misericórdia na celebração do mistério pascal se incorpora perfeitamente ao antigo conteúdo do Domingo in albis como um progresso da tradição apostólica. O uso do termo “benévolo”, na Missa de Dei Misericordia, alude ao mistério da eudokía do Pai (Ef 1,9), o “desígnio benevolente” que constitui a essência da economia. Portanto, o plano divino da salvação (oikonomia) deve ser contemplado à luz da misericórdia divina: em Cristo, a Misericórdia é um princípio de intelegibilidade – tal é a beleza do mistério a ser anunciado, celebrado e vivido, a partir do Domingo da Misericórdia, no qual se contempla a efusão do “Espírito, da água e do sangue”.

Daí a missão primeira e central da Igreja de anunciar a “misericórdia infinita do Pai” no mistério pascal de Cristo, revelada e comunicada no Espírito em Pentecostes (cf. EG 164-165), para “introduzir a todos no grande mistério da misericórdia de Deus” (Misericordiae vultus, 25). Trata-se de uma mistagogia em sentido amplo, como fruto da renovação catequética (EG 163s), pois a ação evangelizadora e a conversão eclesial em muito dependem de uma mística da misericórdia – note-se que “mística”, “mistério” e “mistagogia” têm a mesma etimologia. Em outras palavras, a volta às fontes patrísticas pelo Concílio Vaticano II faz redescobrir – entre Escritura, teologia, liturgia, catequese, pastoral e vida cristã – um profundo sentido unitário e orgânico enraizado na história da salvação, e, como vimos, o principal fator da renovação catequético-pastoral é a concepção unitária da oikonomia iluminada pela celebração do Domingo da Misericórdia.

Para a renovação teológica, segundo o Papa Francisco, o “critério prioritário e permanente é a contemplação e a introdução espiritual, intelectual e existencial no coração do querigma” (Veritatis gaudium, 4 a). E, mais recentemente, acrescentou: “Precisamos que a Teologia esteja atenta a um critério fundamental: considerar ‘inadequada toda concepção teológica que, em última instância, questione a onipotência de Deus e, sobretudo, sua misericórdia’” (Carta ao novo Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, 1º/07/23). Isso porque a fé na onipotência da misericórdia divina, intimamente ligada à celebração do Domingo da Misericórdia estabelecida pelo MR (lex orandi, lex credendi), é a base do impulso inovador, o que gera, porém, uma circularidade, em virtude da qual a renovação encontra um “lugar teológico” no tempo místico-sacramental da Oitava da Páscoa.

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