Imagem e realidade: os limites da Ciência contemporânea

Por que há variação na forma como o novo coronavírus acomete as pessoas? Por que tem sido considerada uma doença tão imprevisível, a ponto de colocar o mundo “em suspenso”? O estupor diante dessas perguntas pode ser explicado, em parte, na história da Ciência ocidental, por sua especialização exacerbada, sua visualização pela sociedade, as imagens que gera e um certo realismo ingênuo, característico da razão contemporânea.

A Ciência, como manifestação da razão no Ocidente, possui uma longa história. Nascida no ambiente ao qual os historiadores, posteriormente, chamaram “época das luzes” (Iluminismo), buscava afastar a razão ideal da crença cega e da aceitação de verdades a partir, exclusivamente, da autoridade. Nesse sentido, em seu momento inicial, algumas vezes conflitava com práticas e vivências religiosas próprias do fim da Idade Média e, erroneamente, acabou sendo vista como contrária à fé. Com o Positivismo de Augusto Comte, chegou-se à proposição da razão submetida apenas às leis da aprovação factual positiva. Só é razoável aquilo que for passível de verificação. A racionalidade científica torna-se medida de todas as coisas. Esse conflito foi, ao longo dos séculos, assumindo diferentes roupagens chegando, no século XXI, à explícita negação das dimensões religiosas ou a negações delimitadas e parciais.

Além disso, da crescente especialização e divisão do saber decorre a criação de culturas e linguagens próprias. O “cientificês” obriga-nos a uma alfabetização científica para a leitura e consumo dos produtos da nova era. Especialistas são requeridos para manifestar-se sobre coisas que, antes, eram triviais ou faziam parte da experiência cotidiana. Tais especialistas, em nome da Ciência, lançam mão de vocabulários específicos e levam ao limite extremo sua vocação universalista. Não existem mais os seres humanos, mas “o” ser humano descrito pelos sociólogos, psicólogos, neurocientistas ou médicos. Do mesmo modo, não há os organismos aos quais se denomina vírus, mas “o” coronavírus, tal qual descrito pela ciência epidemiológica. Sua imagem estampada nos jornais ganha status de entidade própria no imaginário popular.

Ao se difundir a imagem, fotografada ou imaginada, do vírus pelas várias mídias, construímos uma ideia dele que, em certo sentido, se aproxima da realidade – porque fundada em representações reais –, mas também a reduz, se não for compreendida como representação. O vírus, nesse sentido, terá uma característica geral, que aquelas representações alcançam, e isso já é um grande auxílio da Ciência. Ele possui, igualmente, porém, realidade única, singular, para cada indivíduo (ou organismo), que a representação não pode alcançar. A variação no efeito que o vírus produz em cada corpo humano é, por si, a integração entre, no mínimo, para sermos didáticos, dois indivíduos singulares (o primeiro, o humano; o segundo, o vírus). Assim como nós somos únicos, originais, também é de se esperar que cada partícula do vírus seja diversa, específica, acoplando-se e provocando reações típicas, mas igualmente singulares. Urge a necessidade de uma razão que se abra às possibilidades do real e não confunda a representação com aquilo que se busca representar (o realismo ingênuo), exigindo que a realidade se comporte segundo a expectativa. Uma razão livre é o de que mais precisamos.

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