Peço licença a você, leitora ou leitor, para tentar sair do tema praticamente monocórdico da COVID-19, porém proponho a partir dele (mais) uma reflexão.
Observamos com apreensão os números crescentes de infectados e mortos, com a consciência de serem filhos de Deus que têm suas vidas afetadas ou sua etapa terrena encerrada. Inquieta-nos o imponderável pessoal, social, econômico e político que se descortina. Testemunhamos, igualmente, uma corrente de solidariedade, como que uma continuação, de fato, da Campanha da Fraternidade, sabedores de que sempre “é tempo de cuidar”…
Ao mesmo tempo, já se começa a vaticinar o que será o pós-pandemia. Haverá um “novo normal”? O mundo será melhor? Ou voltará a ser como antes? O que será está em nossas mãos.
Em sua homilia no Domingo da Misericórdia, o Papa Francisco augurou: “Oxalá [essa pandemia] mexa conosco com o que está a acontecer: é tempo de remover as desigualdades, sanar a injustiça que mina pela raiz a saúde da humanidade inteira!” E numa carta aos movimentos populares: “Também gostaria de convidá- -los a pensar no ‘depois’, porque esta tempestade vai acabar e suas sérias consequências já estão sendo sentidas […] Quero que pensemos no projeto de desenvolvimento humano integral que ansiamos, focado no protagonismo dos povos em toda a sua diversidade e no acesso universal aos três ‘T’ que vocês defendem: terra e comida, teto e trabalho”.
As crises sanitária, econômica, social, psicológica e política aguçadas pela COVID-19 denunciam os “delírios de onipotência” de nossa sociedade, como bem aponta Dom Walmor Oliveira de Azevedo, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): “Percebe-se, assim, que as pandemias são apenas sintomas que causam medo. As doenças são enraizadas nos delírios de onipotência. Compreende-se, pois, que a esperança da superação da avassaladora pandemia da COVID-19, a qual parou o mundo, e de tantas outras, depende de novos hábitos e práticas organizacionais, com a indispensável consideração da vida como dom precioso. Obviamente, a referência não é somente a própria vida, mas o bem maior de todos. Novas lógicas devem inspirar o mundo do trabalho, qualificar a convivência e promover uma espiritualidade que resgate o ser humano da pequenez”.
O Papa pediu ao Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral que criasse uma comissão de trabalho, a fim de “exprimir a solicitude e o amor da Igreja por toda a família humana diante da pandemia de COVID-19, sobretudo mediante a análise e a reflexão sobre os desafios socioeconômicos e culturais do futuro”. Compete-lhe, entre outros, pensar na sociedade e no mundo pós-COVID-19 nas esferas ambiental, econômica, trabalhista, sanitária, política, da comunicação e da segurança.
Para tanto, requer-se uma visão sistêmica, inspirada na ecologia integral (“tudo está interligado”), baseada numa leitura inter e transdisciplinar da realidade (nenhuma ciência sozinha dá conta dessa tarefa).
O convite da Igreja estende-se a todos nós, cristãos, naquele campo de ação que nos cabe viver e transformar: seja num condomínio, num movimento social, na esfera profissional, econômica, política… Assim, este tempo que estamos vivendo pode se tornar um tempo favorável, um kairós. A graça de Deus certamente atua. Cabe a nós fazer com que ele se efetive historicamente…