Povo da rua, solidariedade e subsidiariedade

Tramitou pela Câmara Municipal de São Paulo um Projeto de Lei (PL 445/2023) estabelecendo protocolos de segurança alimentar para entidades e pessoas que façam doação de alimentos a moradores em vulnerabilidade social na cidade, incluindo multas altíssimas aos que o fizessem sem a devi- da autorização da Prefeitura.

Na prática, o projeto se tornava um instrumento de coação, que dificultava e até impedia a doação de alimentos ao povo da rua. Dom Odilo, em sua coluna no O SÃO PAULO (Dar de comer a quem tem fome – 3/jul/2024), alertou para a importância da oferta de comida aos necessitados, seja como solidariedade humana, seja como caridade cristã. O projeto aparentemente não seguirá adiante, mas permite uma reflexão mais ampla sobre o papel do Estado e sua relação com as obras sociais.

As pessoas em situação de rua ocupam, para morar, espaços públicos que deveriam ter outras finalidades. Isso acarreta, objetivamente, um conflito de uso, que agrava ainda mais sua fragilidade social. Os maiores incomodados não são os mais abastados, mas sim os moradores de baixa renda dos bairros centrais, os comerciantes com pequenas lojas nas ruas – cidadãos com menor poder econômico e político. É sintomático que a remoção das pessoas em situação de rua seja mais rápida quando estão em bairros ricos ou sujeitos à especulação imobiliária…

Na encíclica Caritas in veritate (CV 58), dedicada às implicações da caridade para a vida econômica e social, Bento XVI escreveu que a solidariedade deve combinar-se com a subsidiariedade, princípio pouco conhecido da Doutrina Social da Igreja. Entre os aspectos desse princípio, está a noção de que cabe ao Estado subsidiar as iniciativas solidárias da sociedade organizada, pois as melhores soluções são dadas por aqueles que já enfrentam os problemas – e mais ainda quando os enfrentam com amor.

O caráter subsidiário do Estado indica que os governos devem apoiar as obras sociais do Terceiro Setor em geral (não só as católicas), com recursos, informações, orientações e até com a devida fiscalização, para que se mantenham transparentes, evitando a manipulação indevida da solidariedade – tudo isso sem querer controlá-las ou determinar sua forma de atuação. Numa situação como a do povo da rua, na qual a solidariedade esbarra nos conflitos sociais, cabe ao Estado também a mediação dos conflitos – visando a fortalecer e dar mais eficiência à solidariedade e não a dificultar ou inibir.

Na encíclica Laudato si’ (LS 176- 181), o Papa Francisco salienta a necessidade do diálogo como base para novas políticas sociais. Governantes e legisladores precisam ouvir, respeitar e aprender com aqueles que praticam a solidariedade, para caminhar rumo à solução dos problemas. Cada um dos envolvidos nos problemas deve ser ouvido e respeitado, uns devem conhecer as dificuldades dos outros, todos devem estar dispostos a fazer concessões para a construção do bem comum. Apesar de muitos esforços, é forçoso reconhecer que, nessa questão, esse diálogo e essa predisposição para encontrar soluções efetivas não têm sido suficientes para apontar políticas públicas consensuais na cidade. Pelo contrário, parece que caminhamos para nos fechar cada vez mais em posições e ideias preconcebidas, mesmo após constatar que não resolvem os problemas.

Além disso, todos temos que entender que as melhores soluções se baseiam na promoção humana e na solidariedade, focadas em apoiar os mais fragilizados, para se atingir o bem de todos.

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