A Maria de Fátima, da Vila Prudente, me enviou a seguinte dúvida: “Padre, se dizem que a voz do povo é a voz de Deus, como explicar que o povo tenha mandado crucificar Jesus, como a gente ouve no relato da Paixão de Cristo?”
Esta pergunta é muito interessante. De fato, quando a gente lê na Bíblia aquele povão pedindo a Pilatos que crucifique Jesus, a gente lembra deste dito popular que afirma que a voz do povo é a voz de Deus e nos perguntamos: “Uai! Como a voz de Deus iria querer um julgamento tão injusto daqueles que acabou com a condenação de um inocente?”
De fato, a sabedoria popular afirma que a voz do povo é a voz de Deus. Mas há algumas condições para que esta voz seja voz de Deus. Veja só: se o povo é manipulado pela imprensa, por líderes loucos ou mal-intencionados, a voz dele deixa de ser a voz de Deus. Lembre-se que o mesmo povo que aclamou Jesus foi o mesmo que depois, manipulados pelos chefes dos judeus, pediu a crucifixão de Cristo.
Se o povo não se reúne e não se organiza para discutir seus problemas e depois exigir seus direitos, a gritaria dele ou a revolta ou o apelo à violência deixa de ser a voz de Deus.
A voz do povo que clama por justiça, que diz não à violência, que quer saúde, escola, educação é a voz de Deus. Já não pode ser de Deus a voz do povo que incitado por maus políticos, por gente sem compromisso com a vida pede a pena de morte, o aborto.
Deus nos criou pessoas livres e inteligentes, com a missão de crescer, multiplicar, dominar sobre as outras criaturas e viver em paz consigo mesmas, com o próximo e com o seu criador. Ele nos fez seres sociais. Se nos organizamos para o bem, estamos no caminho indicado por Deus e nossa voz é a voz de Deus. Se nos organizamos para o mal, contrariamos os planos de Deus e nossa voz não é mais a voz de Deus.
Por tudo isso, Maria de Fátima, nós precisamos ter muito cuidado com esta afirmação. Temos que entender a palavra “povo” como grupo de pessoas que querem caminhar juntos na paz, no amor, na solidariedade. Um grupo de pessoas que tem consciência dos seus direitos e dos seus deveres. Um grupo de pessoas que participa de tudo aquilo que se relaciona com a vida pessoal de cada um e com a vida em comum. Isso é povo. Nesse sentido podemos dizer que a voz do povo é a voz de Deus. Agora o aglomerado de pessoas sem consciência, sem liberdade, que vai na onda, que não tem vontade própria, que aceita ser explorado, que não discute, não questiona, não coloca em comum suas alegrias e dores, que não soma forças para transformar a realidade em que vive, isso não é povo nem sua voz é a voz de Deus.
Será que me fiz entender, Maria de Fátima?
Volto a insistir: no julgamento de Cristo não foi a voz do povo que prevaleceu, foi a voz de uma massa sem vontade própria manipulada pelos que queriam matar a Jesus. A verdadeira voz do povo, dos pequenos, dos sofridos, daqueles a quem Jesus curou, foi calada naquele processo iníquo.
Penso, as vezes, que a própria Igreja Católica tem uma visão romanceada, fantasiada do “povo”.
Uma das definições dadas pelo dicionário de língua portuguesa para povo, e talvez a mais ampla, seja: conjunto de pessoas, ajuntamento de pessoas, multidão.
O fato é que nesta multidão há pessoas boas e ruim. Pessoas de boa educação e extremamente inconvenientes. Nem tudo é manipulação das massas (aqui pode-se entar uma reflexão sobre livre-árbitro). Há pessoas boas e ruins que formam o ajuntamento, o povo.