A 10 anos da comemoração do segundo milênio da crucificação, o Ressuscitado e o nosso coração

Não temos as datas exatas que marcaram a vida de Cristo. Natal e Páscoa, ano 0 e ano 33, são todas datas simbólicas ou provenientes de cálculos aproximados, feitos muito depois dos acontecimentos. De qualquer forma, estamos apenas a 10 anos das comemorações do segundo milênio da crucificação do Senhor.

Autores consagrados, declaradamente ateus e/ou vindos de uma história de vida cristã, como o escritor José Saramago (O Evangelho segundo Jesus Cristo, São Paulo: Companhia das Letras) e o cineasta Martin Scorsese (A Última Tentação de Cristo, baseado no romance de Nikos Kazantzakis) frequentemente realizam obras procurando nos mostrar uma face “mais humana” de Cristo.

A comunidade cristã costuma se sentir ofendida e ultrajada por tais obras, que distorcem os relatos e o sentido dos Evangelhos. Contudo, elas trazem em si uma falha muito mais sutil e problemática: fazem a pergunta errada e, por isso, só podem encontrar respostas erradas. A grande pergunta não diz respeito ao lado humano de Cristo, mas sim a seu lado divino.

A existência, nas periferias do Império Romano, de um grande pregador, de um místico ao qual se atribuía a realização de milagres, que terminou tragicamente numa cruz, pode ser relevante – mas não chega a ser extraordinária. Milhares de grandes homens semelhantes existiram na história. Muitos, talvez a maioria, tiveram sua história recontada com detalhes extraordinários. Nada disso, contudo, é suficiente para que mereçam mais do que o estudo histórico ou a meditação sobre suas ideias.

Aquele que impactou o mundo a ponto de dividir o tempo em um antes e um depois nos intriga não por suas características como homem. Tentar entender mais essas características ou criar novas histórias em torno de sua vida não explicará seu fascínio. A grande questão é em que transcendia do humano.

Pode ter acontecido, na história, que o Infinito tenha se acomodado à trivialidade da existência humana? Os poderosos são sempre ciosos de seu poder e de suas prerrogativas, terá o Poder Absoluto abdicado de si mesmo para estar conosco por um ínfimo instante dentro da eternidade? Insistirá a Razão Absoluta que rege todas as coisas a se apresentar a nós como escândalo e loucura (1Cor 1, 23)? Nós, que não perdoamos nem a quem amamos, que muitas vezes não perdoamos nem a nós mesmos, poderíamos ser perdoados por Aquele que nunca erra? Essas são as verdadeiras perguntas que precisam ser exploradas por nossa mente questionadora e nosso coração inquieto, aquelas que que têm o poder de mudar radicalmente nossa vida.

Luc Ferry, filósofo ateu francês, em A tentação do Cristianismo (São Paulo: Objetiva), considera que o sucesso do Cristianismo se deve à perfeição de sua promessa. Queremos nos libertar da morte; pois bem, Cristo morreu e ressuscitou para que ganhássemos a vida eterna. Muitas correntes filosóficas e religiões prometiam uma vida eterna, mas com a dissolução da individualidade humana no fluxo eterno do cosmo; no entanto, na vida eterna dos cristãos permaneceremos, de alguma forma, com nossa identidade, pois é a pessoa de cada um de nós que é amada. Queremos nos libertar do peso esmagador da culpa – pois fomos perdoados pela Sua misericórdia, salvos pelo Seu sacrifício! É tudo bom de mais, impossível as multidões não seguirem essa promessa! Mas ele, o filósofo cético, não pode acreditar em algo tão bom, tão condizente aos desejos humanos… Por isso é ateu!

Quase dois mil anos depois de sua morte, Cristo permanece como aquele que mais corresponde ao nosso anseio de felicidade. Contudo, por mais que nós mesmos queiramos muitas vezes, não se apresenta como evidência indiscutível, à qual todo ser humano é obrigado a aceitar racionalmente. Permanece sempre como companhia a ser encontrada e verificada no coração de cada um de nós.

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