A beleza e o conhecimento de Deus

PASTRO, CLÁUDIO. Crucifixo vazado, Santuário Nacional de Aparecida. Foto de Roberto Parizzi

Dizendo com os termos canônicos da percepção visual, a beleza denota a descoberta do invisível por meio do visível, mas não como um acréscimo ou mero ‘além’ em relação ao que vemos sensivelmente, mas como a condição mesma da possibilidade do visível. Nós vemos sensivelmente as coisas ao nosso redor, mas não vemos da mesma maneira o sentido. E, no entanto, se não percebêssemos o sentido daquelas coisas, possivelmente nem as veríamos, ou melhor, ‘olharíamos’ para elas, sim, sem, porém, ‘vê-las’ realmente.

Agostinho de Hipona, no livro X das suas Confissões (397-400), descreve o modo como o nosso ‘eu interior’ (ego interior) vem a conhecer o significado último da realidade com a ajuda do nosso ‘eu exterior’ (per exterioris ministerium). O contexto dessa descrição é particularmente significativo: Agostinho quer saber quem é o seu Deus, quer dizer, onde pode localizar aquele significado que se revelou a si como uma presença amorosa por meio dos encontros, dos acontecimentos, dos próprios dramas de sua vida: “Mas o que amo, quando te amo? Não uma beleza corpórea (speciem corporis), nem uma graça temporal: não o esplendor da luz, tão caro a estes meus olhos, não as doces melodias de canções em todo tom, não a fragrância das flores dos unguentos e dos aromas, não o maná e o mel, não os membros aceitos pelos abraços da carne. Nada disso amo quando amo o meu Deus”.

E, no entanto, como ele se apressa a dizer, amando o seu Deus, ama “uma espécie de luz, e voz, e cheiro, e comida, e abraço”. Para conhecer o que amo, quando amo uma realidade experenciada pelo meu homem interior, neste caso, o próprio Deus, devo começar interrogando as coisas fora de mim: o céu, a terra, o mar e tudo isso que encontro no universo. Com as minhas perguntas, escreve Agostinho, trago o meu olhar sobre as coisas e as coisas me respondem por meio de sua forma de beleza. E todas – mesmo quando aparecem como belas – respondem: não somos nós o que procuras, “não somos o teu Deus”, porque fomos feitas.

As coisas respondem. Por que para alguns tal beleza se detém no aspecto agradável percebido pelos sentidos, enquanto para outros é sinal da proveniência das coisas de uma origem maior que elas? A beleza aparece a todos os seres dotados de sentidos, mas não fala a todos da mesma maneira. Os seres humanos, na medida em que “são capazes de fazer perguntas” podem ver o Deus invisível por meio da criação visível.

Todavia, essa capacidade humana de ver compreendendo e julgando, não garante automaticamente que percebamos a voz da beleza. Os seres humanos, com efeito, correm o risco de perder a sua capacidade de perguntar, sempre que se detêm no imediatismo das coisas criadas, e tornam-se escravos das aparências: “os servos não podem julgar” – a percepção da beleza do real requer uma postura de liberdade de juízo, sem a qual não se pode passar do sensível ao seu significado último, do visível ao invisível.

As coisas, portanto, “respondem apenas a quem lhes interroga sabendo julgar”. A sua voz, isto é, a sua beleza, não muda, mas apresenta-se diversamente a quem apenas as vê e a quem, ao contrário, as vê e a interroga. Assim, a beleza “fala a todos, mas apenas aqueles que confrontam esta voz, recebida de fora, com a verdade no seu interior, a entendem”.

O eu e a realidade. A beleza é Nele verdadeiramente percebida numa experiência de diálogo e de correspondência entre o eu e a realidade, entre o interno e o externo, entre isso que percebo sensivelmente e o seu sentido percebido racionalmente. No convite que a beleza dirige ao nosso eu, graças à voz que nos chama por meio do fascínio da forma (species), o ‘eu’ é literalmente ‘movido’ a ser ele mesmo. Ouvindo aquele convite e perguntando o “porquê” daquela voz, o nosso ‘eu’ é ‘capturado’ ou ‘agarrado’ pela realidade: e assim pode emergir, pode sair em sua plena subjetividade.

Para Agostinho, a beleza das coisas não se identifica com o mero aspecto estético, mas com a ordem, a harmonia e a razão profunda pela qual existem. Por isso, precisamente na medida em que é julgada ‘bela’, a realidade se manifesta em seu significado; e, vice-versa, o verdadeiro significado das coisas se manifesta por meio de sua beleza. Nesse caso, o belo coincide com a correspondência entre a nossa pergunta de sentido e a resposta que as coisas nos dão; e, por sua vez, o nosso próprio questionamento é o modo mais próprio que possuímos para responder à pergunta que o ser das coisas continuamente nos dirige.

Excertos da palestra “A beleza que nos faz conhecer”, proferida no XI Congresso Internacional em Ciências da Religião, realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Goiás, publicada em MARTINS FILHO, J.R.F. e cols. Religião, arte e cultura: multiplicidades convergentes. Porto Alegre: editora Fi, 2023.

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