A dimensão divina do HOJE

Na liturgia, tempo e espaço são termos, conceitos, realidades cujo significado e modo de entender são muito diferentes daquele filosófico. Na liturgia hodie – hoje – como o ano litúrgico todo, não significa uma realidade física, mas o esplendor, a faixa de luz da graça com a qual Deus Pai ilumina a vida de cada ser humano. Todo o ano litúrgico é uma grande memória da história da salvação. Fazer memória (que é mais do que “lembrar” ou “rememorar” para nós) é uma necessidade crucial para o povo judeu do Antigo Testamento. Quantas vezes Deus chama o Seu povo à memória, à memória das Suas obras, do Seu amor, da Sua ação, do Seu braço poderoso que o resgatou e salvou muitas vezes. As pessoas, os fatos, o amor se tornam presentes pela memória. O ser humano sem memória já não sabe quem é. Quem não é lembrado não existe. É a memória que torna algo presente, real e atual. Para crer, alimentar a fé e a relação com Deus, é necessária a memória, uma memória sobrenatural que nos faça recordar as grandes obras de Deus.

Na festa da Exaltação da Santa Cruz cantamos o belo refrão do Salmo 77: “Não te esqueças das obras do Senhor!”. É o que diz também o Catecismo da Igreja Católica (CIC 1363): “Segundo a Sagrada Escritura, o memorial não é somente a lembrança dos acontecimentos do passado, mas a proclamação das maravilhas que Deus realizou por todos os homens. A celebração litúrgica desses acontecimentos torna-os de certo modo presentes e atuais. É desta maneira que Israel entende sua libertação do Egito: toda vez que é celebrada a Páscoa, os acontecimentos do Êxodo tornam-se presentes à memória dos crentes para que estes conformem a sua vida a eles”. Guardando a nossa memória e alimentando-a na fé, podemos viver o ano litúrgico como uma imersão contínua nos acontecimentos salvíficos realizados por Deus ao longo da história da humanidade, na qual Ele esteve sempre presente e ativamente envolvido.

Com o calendário do ano, contamos os dias, os meses, mergulhamos na mudança das estações que influenciam as nossas vidas e com as quais nós podemos nos sentir parte do mundo criado. Já o ano litúrgico nos recorda as maravilhas de Deus, memória dos acontecimentos salvíficos que inserem o ser humano na economia eterna da vida, no tempo de Deus, no amor da Trindade, no seio do Pai. O maravilhar-se das coisas de Deus é vida, traz vida e é para a vida. Aquele que é chamado o Vivente leva o ser humano a participar de Sua vida. Dessa forma, celebrando cada acontecimento, cada memória da ação de Deus na história, podemos participar da vida de Deus integralmente, aqui e agora, com as nossas realidades. Assim acontece em cada Santa Missa, em cada Tríduo Pascal – esses misteriosos três dias, os mais importantes de todo o ano litúrgico, que antecedem a Páscoa; em cada Natal; em cada festa e memória! Podemos ver e experimentar a esperança do encontro com Deus em toda a sua plenitude. E tudo isso graças à Encarnação, aquele evento grandioso que João resumiu em uma frase tão curta que surpreende: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14).

A eternidade de Deus entra no tempo do ser humano, entra na história, num momento preciso da passagem do tempo. O eterno torna-se visível, vida concreta. “O tempo já se completou” (Mc 1,15). Todo o passado, presente e futuro se unem no Homem-Cristo, gerando um novo tempo, o HOJE em Cristo, que é “o mesmo ontem, hoje e sempre” (Hb 13,8) No primeiro capítulo do Apocalipse, encontramos provas belas desta PLENITUDE DO TEMPO em Cristo: “Eu sou o Alfa e o Ômega…aquele que é, que era e que vem, o Todo-poderoso!”; (Ap 1,8) “Eu sou o Primeiro e o Último, o que Vive” (Ap 1,17). Cristo é “Aquele que é que era e que vem” (Ap 1,4).

O Deus que agiu ontem, agirá hoje e amanhã, que cria o ontem, o hoje e o amanhã… Este é o estupendo HODIE – HOJE de Deus, graças ao qual podemos confiar nele e colocarmos nossa vida em suas mãos, pois estas seguram o ontem, o hoje e o amanhã.

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