A Doutrina Social da Igreja a partir do amor

Bento XVI repropõe e reafirma, a partir da Deus caritas est (DCE), a compreensão do amor de Deus por nós como base para a Doutrina Social da Igreja: a dignidade e o valor da pessoa humana se evidenciam a partir da experiência de ser amado, o acontecimento do amor nos revela nossa própria dignidade e nos chama à solidariedade. Evidentemente, isso não quer dizer que o amor estivesse ausente nos documentos anteriores, mas esta ênfase merece uma análise. Passa, sem dúvida, por uma característica pessoal do teólogo Joseph Ratzinger, mas também revela uma forma diferente do pensamento social católico se apresentar ao mundo. Nesse sentido, tanto com Bento XVI quanto com o Papa Francisco, o magistério social católico ganha um aspecto renovado que precisa ser devidamente entendido e aplicado.

O Compêndio da Doutrina Social da Igreja, publicado em 2004, foi uma síntese abrangente do magistério social católico até aquela data. Praticamente todos os princípios que orientam o pensamento sociopolítico católico estão ali enunciados. Até mesmo as bases da posição cristã em relação à questão ambiental, magnificamente desenvolvidas posteriormente na Laudato si’ (2015), estão ali expostas. Contudo, uma sutil mudança (que, diga-se de passagem, vigora ainda com o Papa Francisco) marcou a passagem do pontificado de São João Paulo II para o de Bento XVI: o amor como ponto de partida da reflexão sobre temas sociais.

Das três encíclicas publicadas por Bento XVI, duas levam a palavra caritas, amor, no título. Em comparação com o Compêndio, substantivos como amor, caridade, misericórdia, ternura – todos indicativos de um mesmo foco – são cerca de duas vezes mais comuns na encíclica Caritas in veritate (CV, 2009) e cerca de seis vezes mais comuns na segunda parte (dedicada a temas sociais) da encíclica Deus caritas est (DCE, 2005). O título e frequência com a qual uma palavra aparece num texto não revelam sua lógica interna, mas refletem as preocupações do autor. Como entender essa mudança de enfoque entre o Compêndio e as encíclicas sociais de Bento XVI?

Ainda que a Doutrina Social seja uma reflexão teológica, ela é destinada a todos. Numa sociedade plural, seus princípios necessitam de uma fundamentação antropológica e sociológica que transcenda a base confessional. A mera apresentação de uma norma, por mais verdadeira e justa que seja, não basta para criar uma base de entendimento numa sociedade pluralista.

O reconhecimento da dignidade da pessoa humana foi uma das marcas do século XX. Por mais que, em muitas situações, os princípios fossem e ainda sejam negados, na prática, criou-se um consenso internacional sobre a dignidade e os direitos da pessoa. São João Paulo II, que como acadêmico havia abraçado a filosofia personalista, viu ali um ponto de referência compartilhado, que permitiria o diálogo entre a Doutrina Social e os diferentes programas políticos contemporâneos. Assim, tanto na estrutura lógica quanto na ênfase geral, o Compêndio, que não se restringe ao período de São João Paulo II, mas segue a linha central de seu pontificado, é uma obra marcadamente personalista.

Contudo, a percepção da pessoa humana e de sua dignidade deixou de ser considerada como autoevidente ao longo da segunda metade do século XX, sendo cada vez mais vista como um constructo social relativo. A autonomia individual foi consagrada como único valor universal, levando à relativização de todos os demais. A visão personalista deixou de ser um ponto de referência compartilhado entre católicos e não católicos. O interminável dissenso sobre a questão do aborto e do direito à vida do embrião humano é o exemplo mais clamoroso desse contexto cultural.

Com maior ou menor consciência da situação, para seu posicionamento no diálogo com o mundo secular do século XXI, a Doutrina Social, sem abandonar o princípio personalista, teve que encontrar uma fundamentação mais radical – no sentido de mais próxima às raízes, às origens. A pergunta não formulada, mas implícita no desenvolvimento dos textos pontifícios, é “o que nos permite reconhecer a dignidade da pessoa humana e nos solidarizarmos com ela sem concessões?”

Bento XVI explicita essa questão em seu discurso inaugural da Conferência de Aparecida: “As estruturas justas são, como já disse, uma condição indispensável para uma sociedade justa, mas não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver esses valores com as necessárias renúncias, inclusive contra o interesse pessoal. Quando Deus está ausente, o Deus do rosto humano de Jesus Cristo, esses valores não se mostram com toda a sua força, nem se produz um consenso sobre eles. Não quero dizer que os não-crentes não podem viver uma moralidade elevada e exemplar; digo somente que uma sociedade na qual Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais e a força para viver segundo a pauta destes valores, também contra os próprios interesses”.

Uma criança que venha de lares desfeitos ou que não tenha conhecido uma família terá muito mais dificuldade para reconhecer a própria dignidade do que a pessoa que conheceu o amor ao longo de seu desenvolvimento humano. Isso não quer dizer que as exigências de dignidade e solidariedade não se apresentem, mas serão mal compreendidas, encaminhando-se para uma postura autocentrada, indiferente e até violenta para com os demais.

Por isso, Cristo, o Pastor que por amor abandona todas as ovelhas em busca da desgarrada (Lc 15,3-7; Jo 10,11-16), o Deus que se deixa matar por amor a suas criaturas, que o traíram e continuam a traí-lo, é o maior anúncio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade a ela já feito na história. Bento XVI e, depois dele, Francisco perceberam a necessidade de que o amor cristão crescesse em sua dimensão política (DCE 28-30), tornando-se “amor social”, “amor político” (Fratelli tutti, FT 183-186).

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