A festa pascal da misericórdia

Aparentemente muito diferentes entre si, São João Paulo II e o Papa Francisco compartilham da mesma convicção da posição central da misericórdia na vida cristã. O primeiro, baseando-se na santa polonesa Faustina Kowalska, instituiu a celebração da Divina Misericórdia, no domingo logo posterior ao da Páscoa. O segundo, para o qual “o nome de Deus é misericórdia”, proclamou o Jubileu da Misericórdia, em 2015.

A misericórdia não é uma condescendência arrogante e pretensiosa com que poderosos e autoproclamados justos humilham os demais. A misericórdia é o amor que acolhe e se doa, inclusive quando não somos merecedores deste amor. Ela nos cobre com sua ternura, nos encoraja a sermos melhores, mas não nos condena por nossas falhas. Todos ansiamos pela misericórdia, mesmo quando não a conhecemos e a consideramos impossível. A Páscoa é a celebração do grande gesto no qual a misericórdia se torna palpável e visível, espetáculo de sacrifício e esperança para essa humanidade sofrida da qual fazemos parte todos nós.

Jesus Misericordioso (Eugeniusz Kazimirowski, 1934)

Deus depositou na criação um fundamento e leis estáveis nos quais podemos nos apoiar com confiança em resposta ao sinal da Sua fidelidade. A criação está em função do culto e da adoração de Deus, visto que o culto está inscrito na ordem da criação (cf. Catecismo da Igreja Católica, CIC 346-347): “Deus disse: ‘Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite; que eles sirvam de sinais, tanto para as festas [tempos ou estações/festas] quanto para os dias e os anos’” (Gn 1,14). Trata-se do “fundamento” do tempo litúrgico (cf. CIC 1163): “A Santa Mãe Igreja julga seu dever celebrar em certos dias fixos no decurso do ano […] Em cada semana, no dia em que ela chamou Domingo, comemora a Ressurreição do Senhor, celebrando-a uma vez também, na solenidade máxima da Páscoa” (Sacrosanctum Concilium, SC 102). O Domingo é, assim, um “dia de festa primordial” (SC 106).

O primado de Deus, primado da adoração, indica a ordem correta das preocupações humanas (CIC 347); nesse sentido, aprender, em primeiro lugar, o modo justo da glorificação de Deus – a ortodoxia – é o grande dom da fé cristã (cf. J. Ratzinger, prefácio às Obras Completas, vol. XI). No prolongamento do Dia da Ressurreição, a festa do Domingo da Divina Misericórdia visa a exaltar/glorificar essa misericórdia na celebração do Mistério Pascal, com um sentido escatológico. A Festa da Misericórdia goza de uma centralidade na economia sacramental, assim como é central na economia da salvação o Desígnio eterno de misericórdia de recapitular todas as coisas em Cristo (cf. Ef 1,9-10; Gaudium et spes, GS 45). Uma “cultura da misericórdia” pode realizar tal desígnio na história, pois se trata da inculturação/recapitulação, em que a Igreja manifesta e opera o mistério da misericórdia divina para o retorno à unidade sob Cristo Cabeça. Uma ordem justa no mundo depende, antes de tudo, de um “culto justo”, da ortodoxia. A isso se “ordena” a recepção e o crescimento da Festa da Misericórdia.

Tempo de celebração e festa. Em Ratzinger se leem estas profundas considerações (A festa da fé, 1981): se a estrutura básica objetiva da liturgia se define com o termo “festa”, quanto ao seu conteúdo é festa da Ressurreição do Senhor, daí decorrendo o “primado da adoração” e o caráter objetivo da autorização para a alegria, e isso significa que a autorização à alegria se situa na adoração. E se com “festa da Ressurreição” se define o significado central da festa cristã, a adoração é o núcleo que a configura: nela se vence a morte e se faz possível o amor. A adoração é a verdade.

A partir do domingo da Ressurreição, “o Dia que o Senhor fez” se prolonga por uma semana inteira e se renova numa semana de semanas (Tempo Pascal). A Oitava da Páscoa são os oito primeiros dias entre o domingo da Ressurreição e o 2º domingo da Páscoa. Na terceira edição típica do Missal Romano (trad. CNBB) consta o nome Segundo Domingo da Páscoa “ou Domingo da Divina Misericórdia”, no qual a conjunção “ou” (vel, na edição latina) tem valor de equivalência e inclusão. Desse modo, de acordo com o princípio evangélico nova et vetera, “a Igreja, conservando ‘o que é antigo’, isto é, o depósito da tradição, cumpre também o seu dever de julgar e de prudentemente assumir ‘o que é novo’ (cf. Mt 13,52)” (Instrução Geral sobre o Missal Romano, 15).

Desde a celebração da Páscoa, nosso tempo é transfigurado pela liturgia e se torna “tempo sacramental”, penetrado pelo Dia da Ressurreição. É o mistério do oitavo dia, uma “imagem da eternidade” (cf. Dies Domini, DD 26), que fundamenta a noção de Oitava Pascal: “Para nós nasceu um dia novo: o dia da Ressurreição de Cristo. O sétimo dia encerra a primeira criação. O oitavo dia dá início à nova criação” (CIC 349). A Oitava da Páscoa é o tempo propriamente sacramental: a semana que se segue ao dia da Ressurreição não é uma semana cronológica, e sim a extensão deste “dia que não conhece ocaso” (liturgia bizantina), convertendo-se no protótipo, na matriz mesma, de todas as semanas do ano litúrgico. É o Dia cantado pelo Salmo pascal (118/117), o “Dia que o Senhor fez” (v. 24), porque “eterna é a sua Misericórdia” (v. 1) (cf. Jean Corbon, Liturgia de Fonte, cap. XIII).

“Este ‘hoje’ do Deus vivo em que o homem é chamado a entrar é ‘a hora’ da Páscoa de Jesus que atravessa e leva toda a história: ‘Para nós que cremos em Cristo, instaura-se um dia de luz, longo, eterno, que não se apaga: a Páscoa mística’” (CIC 1165). Aqui entramos no núcleo mesmo da verdadeira iniciação cristã e da catequese mistagógica na Oitava da Páscoa – entramos na Adoração, no mistério do oitavo dia. Sem tal iniciação, não ganham sentido estas sentenças: “O cristão perfeito vive sempre no dia do Senhor, celebra sempre o domingo” (Orígenes); “Toda semana da sua vida, o cristão vive a única Páscoa, fazendo este tempo luminoso” (São Gregório de Nissa). É um tempo “místico-sacramental”, a ser vivido, doravante, segundo a “mística pascal da misericórdia”.

A plenitude do amor na misericórdia. Mas retornemos ao poema litúrgico da criação, na abertura do Gênesis, com Santo Ambrósio de Milão, conforme as célebres linhas finais do seu Hexaemeron (relato dos seis dias da criação), em que Deus, ao concluir a obra do mundo na perfeição do homem, descansou no sétimo dia: “Fez o homem e descansou – diz Ambrósio –, porque tinha alguém a quem perdoar os pecados […] talvez já estivesse então prefigurado o mistério da futura paixão do Senhor”. É que Deus, sendo misericórdia, encontrou sua perfeita satisfação na morte redentora de Cristo.

Em Santa Faustina Kowalska, no contexto da última Ceia, encontramos uma declaração de valor semelhante: “No momento da consagração, o amor descansou saciado, o sacrifício fora consumado na sua plenitude” (Diário, 684). O mistério da Cruz, inseparável do dia da Ressurreição, também fez plasmar a expressão “Felix culpa” cantada pela Igreja na Vigília Pascal (cf. Exsultet: CIC 412) – é uma paráfrase de um texto de Santo Ambrósio, que revela certa positividade do pecado na economia da salvação e, por isso mesmo, a própria essência do mistério da misericórdia.

A partir da noção primordial de “festa”, a teologia da festa cristã torna-se um caminho privilegiado para viver a “festa pascal da misericórdia” como adoração, liberdade e alegria no “Dia” em que nos voltamos com confiança e esperança para a infinita misericórdia de Deus, que jorra no Espírito Santo (Espírito, água e sangue), desde a fonte do mistério pascal da cruz e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. A festa se transforma aqui em “memorial” da contínua irrupção da Divina Misericórdia na história, que tende para a plena realização escatológica. Ademais, “Festa da Misericórdia” transcende o quadro da assembleia litúrgica, prolonga-se na oração e nas assembleias extralitúrgicas, nos “piedosos exercícios”, que podem atingir altíssima expressão e constituir um patrimônio cultual… (cf. Dicionário de Liturgia, D. Sartore e A. Triacca, “Festa/Festas”).

guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Veja todos os comentários