A importância das virtudes em tempos de crise da atenção

Ao inundarem a vida dos jovens, as telas de celulares e computadores representam um desafio para o seu desenvolvimento que vai muito além dos aspectos meramente tecnológicos. No fundo, é a eterna questão do cultivo das virtudes que se apresenta a nós, agora nessa nova roupagem.

Pexels

No livro Vita contemplativa ou sobre a inatividade (Petrópolis: Vozes, 2023), o filósofo Byung-Chul Han faz uma reflexão bastante contundente: “A coação crescente à produção e à co­municação dificulta o demorar con­templativo. A religião pressupõe uma forma especial de atenção. Malebran­che caracteriza a atenção como a pre­ce natural da alma. Hoje, a alma não mais faz preces. Sua hiperatividade pode ser responsabilizada pela perda da experiência religiosa. A crise da religião é uma crise da atenção”.

Mas o que nos levou a essa crise da atenção? Certamente, os dispositivos móveis desempenham um papel sig­nificativo nesse fenômeno. O avanço da tecnologia trouxe benefícios ine­gáveis, mas também desafios profun­dos, especialmente no que diz respei­to à capacidade de concentração, ao tempo de qualidade e ao cultivo da vida interior. Nesse sentido, a discus­são sobre a proibição do uso de celu­lares nas escolas se apresenta como uma excelente oportunidade para um debate mais amplo e profundo sobre esse tema.

Quando se fala em “bem-estar di­gital”, as discussões costumam girar em torno de temas como acesso equi­tativo à tecnologia, combate à desin­formação, segurança cibernética etc. Esses são, sem dúvida, aspectos rele­vantes. No entanto, há uma dimensão igualmente fundamental e muitas ve­zes negligenciada: a formação ética e moral dos indivíduos para o uso res­ponsável da tecnologia.

Podemos estabelecer novas leis, criar normas mais rígidas e desenvol­ver ferramentas de controle. Ainda assim, tudo isso pode ser insuficiente se não abordarmos a questão central: estamos lidando com a educação de seres humanos. Por isso, limitar a discussão ao discurso de que “fal­tam regulamentações” ou que “é um problema de saúde pública” pode ser uma abordagem simplista. Esse é um tema que vai além de políticas públi­cas e soluções tecnocráticas; trata-se de uma questão essencialmente hu­mana: a dificuldade em estabelecer limites, em encontrar equilíbrio e em desenvolver uma relação saudável com o mundo e consigo mesmo.

Aqui, a filosofia aristotélica nos oferece uma chave de leitura extre­mamente relevante. Aristóteles des­creve a temperança como a virtude que permite regular nossos desejos e impulsos para alcançar uma vida harmoniosa. Em outras palavras, a temperança introduz racionalidade na forma como lidamos com os pra­zeres e as distrações, ajudando-nos a desenvolver autodisciplina, autoco­nhecimento e liberdade interior.

A proibição do uso de celulares em sala de aula pode ajudar a reduzir distrações, mas essa medida, por si só, não resolve a raiz do problema. O que realmente queremos ensinar aos jovens com essa decisão? O objetivo não deve ser apenas impedir a disper­são, mas sim promover uma cultura de atenção, reflexão e autocontrole. Queremos que os estudantes apren­dam a valorizar a concentração, a dis­ciplina e a capacidade de direcionar sua energia para atividades significa­tivas. O risco do mundo digital não é apenas o tempo perdido com distra­ções, mas a transformação das pesso­as em reféns de estímulos incessantes, de ciclos de compulsão e da busca constante por gratificação imediata.

Assim, a reflexão sobre a tempe­rança e outras virtudes não se res­tringe ao debate sobre tecnologia. Vi­vemos em uma era que incentiva os excessos – seja no consumo, seja na necessidade de exposição constante ou na busca incessante por valida­ção externa. Em meio a esse cenário, a temperança se torna uma virtude essencial para aqueles que desejam viver de forma mais equilibrada, com mais presença, maior clareza de pen­samento e uma vida interior mais profunda.

O universo digital é apenas mais uma das dimensões da existência humana. Ele pode ser um espaço de crescimento e aprendizado ou, ao contrário, um local de aprisionamen­to e alienação. Portanto, a questão não deve ser reduzida a regras e res­trições, mas deve envolver a forma­ção integral das pessoas. Esse é um processo que exige consistência, ma­turidade e um compromisso profun­do com a educação para a liberdade e a responsabilidade.

Se queremos preparar as novas ge­rações para um uso mais consciente e saudável das tecnologias, precisa­mos investir na formação de virtu­des, como a temperança. Essa abor­dagem não apenas contribuirá para um desenvolvimento mais equilibra­do, mas também fortalecerá a saúde emocional, a inteligência social e a capacidade de atenção dos indivídu­os. Dessa forma, a tecnologia poderá ser utilizada de maneira mais sábia, permitindo que cada um desenvolva uma vida mais significativa, reflexiva e orientada para o bem comum.

Deixe um comentário