A morte na percepção do velho Simeão*

Deixai agora vosso servo ir em paz,
Conforme prometeste, ó Senhor;
Pois os meus olhos já viram vossa salvação,
Que preparastes perante a face de todos os povos.
Luz para iluminar as nações,
E para a glória de vosso povo, Israel.

(Cântico de Simeão, Lc 2, 29-32)

A tradição católica oferece diariamente ao cristão um momento para que compreenda e se prepare para a morte. Trata-se da Oração das Completas, com a qual encerra seu dia, na qual ouvimos o Cântico de Simeão – aquele que, conta o Evangelho, não morreria enquanto não contemplasse o Messias. Já idoso, vive na expectativa de um acontecimento maravilhoso e improvável. Diante do pequeno Jesus, reconhece a realização da promessa. Agora, ele é aquele que viu a plenitude da promessa que Deus realizou para toda a humanidade, e de forma especial para ele, Simeão. Ciente deste fato, declara-se pronto para a morte: “Deixai, agora, vosso servo ir em paz, conforme prometestes, ó Senhor. Pois meus olhos viram a vossa salvação” (Lc 2, 29-30).

Todos os dias, ao repetir o Cântico, cada fiel, à semelhança de Simeão, é chamado a declarar-se pronto para a morte. Não por resignação ou por uma sabedoria estoica, mas sim porque “viu acontecer” a promessa que lhe foi feita. A esperança no futuro e na eternidade acontece pelo reconhecimento de algo que já ocorre no presente, de uma história que se desenrola diante de nossos olhos. A morte, sob esse olhar, é o momento culminante para aquele que já descobriu o encanto e a beleza da vida, que testemunhou o cumprimento da promessa de Deus para com ele.

A cultura atual faz com que necessitemos sempre de “algo mais”, que vivamos na ânsia por algo que ainda não está dado – e a morte é o triste fim que encerra uma luta em que a vitória é impossível. A promessa que se renova nas Completas é a da realização plena de algo que já foi encontrado neste mundo – ainda que de forma imperfeita.

As duas experiências, de sempre procurar “algo mais” ou de saber que já se encontrou “algo que realmente tem valor”, se misturam na vida cotidiana de todo cristão, mas uma delas terá que ser determinante. Ou ele está orientado por um “ter mais”, por um “ser mais”, autocentrado, mesmo que compartilhado por amigos, amantes ou companheiros de lutas, ou está orientado pela ação amorosa de Deus, pelo mistério de Cristo, que domina todas as relações e redefine o próprio “ter mais” ou “ser mais”.

O Cristianismo e a morte: fato ou ilusão? Comentando o Cristianismo, o filósofo francês Luc Ferry, dirá: “É bonito demais para ser verdade. É de tal forma o que queremos ouvir que só pode ser mentira. Não queremos morrer, queremos reencontrar as pessoas que amamos… e, como que por milagre, há um sujeito que chega e nos promete tudo isso” (A tentação do Cristianismo: da seita à civilização, Rio de Janeiro: Objetiva, 2011).

No passado, essa conformidade entre a proposta cristã e o anseio de vida eterna podia ser vista como uma evidência da verdade do Cristianismo e da existência do Deus cristão. Santo Agostinho interpretaria essa questão a partir da famosa frase logo no início de suas Confissões (São Paulo: Abril Cultural, 1984): “Criaste-nos para vós, Senhor, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em Vós”.

Ao longo dos séculos, contudo, aconteceu uma virada gnosiológica que afetou diretamente a recepção do Cristianismo. Hoje, a conformidade entre o desejo e a promessa é interpretada como sinal não do amor do Criador para com sua criatura e sim do caráter ilusório da fé cristã.

A experiência sempre necessária. Uma crença se afirma quando corresponde a ideias capazes de explicar e dar esperança às vivencias daquele que crê. Uma ideia que não tenha suporte experiencial não se sustenta como crível. A fé cristã não é uma ideia abstrata, mas um complexo de ideias e vivências, de experiências nascidas de um acontecimento, o encontro com Cristo.

A crise da fé, quer em termos pessoais, quer em termos sociais, acontece quando suas proposições não são mais sustentadas pela experiência vivida pelo fiel e passam, por isso, a ser transmitidas de forma adulterada, mesmo que formalmente o conteúdo seja mantido.

A fé se baseia em testemunhos e evidências, pois o testemunho precisa de um conjunto de evidências para se apresentar como plausível. Trata-se, de certa forma, da experiência dos samaritanos que dizem à sua conterrânea: “Já não é por causa da tua declaração que cremos, mas nós mesmos ouvimos e sabemos ser este verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4, 41).

A crença dos samaritanos implicou o testemunho da samaritana, mas também o engajamento de sua liberdade e de sua racionalidade em uma vivência que poderia corroborar ou não aquele testemunho. Mas a racionalidade moderna está fechada em si mesma, não permite nenhuma experiência que possa transcender seus próprios pressupostos.

Não eliminar, mas superar a dor e o sofrimento. A fé cristã se baseia na possibilidade de um imprevisto, pois – de fato – a ideia de que o conteúdo de nossos desejos mais profundos, como o de superação da dor da morte, pode se realizar, contradiz nossa experiência cotidiana, sempre marcada por maiores ou menores frustrações. A evidência mais radical de que não se trata de uma ilusão é a experiência da superação do sofrimento. Não de sua eliminação, pois Cristo repete várias vezes que seus seguidores enfrentarão o sofrimento e a perseguição, mas de sua superação por meio do amor e do abraço do Pai (cf. Mc 10, 26-30).

Trata-se de uma ação “misteriosa”, não obrigatoriamente ilógica ou desligada das leis naturais, mas determinada por uma intenção que só se torna conhecida e compreensível ao se realizar. Por isso, essa experiência não pode ser feita por quem não está aberto a essa ação, aparecendo como ilusão ditada pela esperança irracional.

Nenhuma solução para o mistério da morte se mostrou mais adequada ao coração do ser humano que o Anúncio cristão. Mas ele só se torna crível a partir da evidência de uma companhia que age na vida de cada fiel, uma companhia a priori impensável segundo a lógica humana, mas que se torna compreensível, e até mesmo lógica, a posteriori.

* Trecho extraído de “La percezione cristiana della morte nella società secolarizzata” [in] Communio. Rivista Internazionale di Teologia e Cultura, Nº 232, 2012.

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