A devoção a Nossa Senhora Aparecida: em letras, traços e cores

Há 300 anos, a história e a fé dos brasileiros, tanto em nível pessoal quanto social, estão imbricadas com a devoção à Mãe do Salvador por meio de uma pequena imagem, aparentemente desprezada, encontrada no fundo de um rio, destinada a ser sinal para todo o povo.

Mural dos Peregrinos, no térreo da Torre Brasília, alusivo aos peregrinos que vêm ao encontro de Nossa Senhora. “O céu, a terra, a água, todos peregrinam em direção a Maria, ‘a Mãe do Salvador e nossa’, nesse solo sagrado de Aparecida” (PASTRO, C. & COLOMBINI, F. Aparecida. Aparecida: Editora Santuário, 2013). Mostra as mais diversas pessoas que vêm em peregrinação até Aparecida, desde os mais humildes devotos até os papas. Plantas e aves brasileiras indicam o movimento de toda a Criação em direção à Mãe. Nossa Senhora aparece no meio do céu estrelado, com a lua a seus pés e a coroa de estrelas (Ap 12,1-2). A cor de terra remete à corporeidade do ser humano que dialoga com o Mistério de Deus.
Fotos: Padre Valdivino Guimarães, C.Ss.R.

Para compreensão da história de Aparecida, partimos do início da colonização: os primeiros colonizadores sempre recorreram à proteção da Virgem Maria; por isso, a presença de imagens marianas em suas bagagens, sinal de proteção diante dos perigos que o mar e a viagem ofereciam. Com a vinda dos missionários, de modo particular os franciscanos no final do século XVI, a devoção à Virgem Maria foi cada vez mais estimulada. As muitas paróquias criadas com o título despontam desde o alvorecer do século XVI, seguindo pelo XVII e XVIII afora, como, por exemplo, as de Itamaracá-PE (1528), Salvador-BA (1530), Itanhaém-SP (1533), Guarulhos-SP (1668), Raposos-MG (1690), Mariana-MG (1711), Ouro Preto-MG (1716), Cunha-SP (1731), e outras. Em 1646, Dom João IV, rei de Portugal, proclamou Nossa Senhora da Conceição padroeira de Portugal e de suas colônias, e em 1717, Dom João V recomendou aos bispos de Portugal e colônias para que a Festa da Imaculada fosse celebrada com mais solenidade. Anos mais tarde, os estudantes da Academia Real de História de Portugal passaram a fazer o juramento de defender o mistério da Imaculada Conceição de Maria. Foi nesta data, que a Imaculada Conceição se tornou padroeira dos historiadores. É nesse contexto histórico, religioso, político, econômico e social que o encontro da imagem e a devoção a Aparecida se inserem.

Os pobres e o conde no caminho do ouro. A partir de 1670, inicia-se a epopeia do ouro e da prata, extraídos na região de Minas Gerais. Dessa forma, o vaivém de índios, mineradores, sertanistas, missionários, bandeirantes, viajantes que movimentavam os caminhos que margeavam o Rio Paraíba e principalmente os que cortavam a Serra da Mantiqueira, por onde o ouro era escoado, deixavam para trás rastros de pobreza e exploração social, pois “as estradas que carregavam riquezas possuíam atalhos que disseminavam miséria”. A região se transformou. Ao silêncio se sobrepôs o barulho de passageiros que transportavam ouro, sem dizer os vendedores de beira de estrada que favoreceram a formação de vilas de mineradores com moradias precárias, onde quase tudo era improvisado, da moradia até o local do culto.

Neste contexto, Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos (1688-1756), o Conde de Assumar, foi nomeado governador das Capitanias de São Paulo e Minas Gerais, para cuidar do controle das minas de ouro. Desembarcou no Rio de Janeiro em meados de junho de 1717. De lá, seguiu para São Paulo, onde tomou posse no começo de setembro; depois, seguiu viagem pelo Vale do Paraíba, chegando a Guaratinguetá, no dia 17 de outubro, e ali permaneceu até 30 de outubro. Não se sabe se o governador teve conhecimento de que, nos dias em que esteve nessa vila, a imagem foi ali encontrada. O diário de jornada não contém registro do acontecimento. Na vila, Dom Pedro foi recebido com festa, e ali permaneceu até o dia 30 de outubro, seguindo para as Minas.

Para recepcionar à altura o governador e sua comitiva, os pescadores foram convocados a lançarem suas redes, e do rio tirar a maior quantidade de peixe possível para a ilustre visita. O documento do encontro da imagem menciona dois portos: Itaguaçu e José Corrêa Leite. Nesse mesmo documento, traz os seguintes dizeres: “E principiando a lançar suas redes no Porto de José Corrêa Leite, continuaram até o porto do Itaguaçu…”, distância de 7 quilômetros até o local do encontro da imagem. Esse detalhe escancara a dificuldade de encontrar peixes em um tempo que não era propício para a pesca, até o nome do rio dado pelos indígenas revelava dificuldades, pois Rio Paraíba na língua tupi é “Para’iwa”, rio imprestável.

Entre os convocados para a pesca estavam: João Alves, Domingos Garcia e Felipe Pedroso, parentes entre si, cujos nomes aparecem nos livros de batizados e casamentos da paróquia de Guaratinguetá, atestando suas existências e parentesco. O documento que relata o encontro é de 1757, foi transcrito de um documento feito pelo Vigário de Guaratinguetá, Padre José Vilella, que assumiu a Paróquia em 1725, oito anos após o encontro da imagem, tempo curto que assegura a veracidade dos fatos.

Tão pouco tempo nos leva a acreditar que conhecia as famílias dos pescadores, das quais colhera informações. Em um tempo em que não tinham o costume de escrever o livro do Tombo, hábito adquirido em 1757, é certo que Padre Vilela, zeloso que era, tinha muitas anotações referentes aos fatos acontecidos na paróquia, e estas, foram importantes para que Padre João de Morais pudesse escrever a história do encontro da imagem.

A Mulher das Galinhas. Quando pintava esse painel no hall dos elevadores, chegou uma mulher simples que, com gesto acanhado, doou um envelope, dizendo: “Eis um pequeno dinheiro da venda de minhas galinhas e seus ovos, que juntei durante dois anos e que agora ofereço a Nossa Senhora”. No mesmo instante, pintei-a na procissão de peregrinos (Cláudio Pastro [in] PASTRO, C. & COLOMBINI, F Aparecida. Aparecida: Editora Santuário, 2013)

A imagem é encontrada. Pelo que consta em documentos, a pesca começou no Porto de José Corrêa Leite. A distância percorrida pelos pescadores em busca dos peixes fora longa, uma vez que o Rio Paraíba é bastante sinuoso. Após incansáveis tentativas, sem nada pescar, ao tentar mais uma vez, motivados pela esperança, sentem a rede pesar, não por peixes, mas pelo corpo de uma imagem, e, mais adiante, retiram a cabeça da mesma imagem. Viram na imagem um sinal da ação de Deus em prol de seu povo, e na Virgem, uma companheira na missão difícil da pesca e intercessora diante das dificuldades impostas pelos poderosos dos tempos de então. Juntaram corpo e cabeça, e quem sabe, a camisa surrada de um deles, fora transformada no primeiro manto envolvendo a pequenina imagem colocada em um canto da rústica canoa. O gesto não foi por acaso: embora homens ignorantes, eram religiosos, senão, teriam devolvido a imagem às águas; afinal, para que serve uma imagem quebrada? Sabiam que imagens quebradas deviam ter por destino o cruzeiro ou serem arremessadas ao rio. Ao lançar novamente as redes, a pesca que até então não tivera sucesso, foi abundante. Para quem tem fé, naquele momento, por meio de uma tosca imagem quebrada, houve um sinal de Deus ao povo brasileiro, caracterizado como dois primeiros milagres atribuídos a Virgem Maria: o encontro da imagem e a pesca abundante.

A imagem foi levada para a casa de Felipe Pedroso junto do Ribeirão de Sá. Fora consertada com cera de “abelha da terra”, e em seu entorno, famílias começaram a se reunir, principalmente nas noites de sábado, para rezar o Terço e cantar louvores. Nesse período começaram a chamá-la “Aparecida”, não por se tratar de uma aparição da Virgem, mas pelo fato de se referirem ao “aparecimento de uma imagem” na rede. A imagem passa a ser vista como sinal de união, de restauração daquilo que estava despedaçado pela escravidão, pela fome e toda falta de sorte abatida sobre os pobres. Na epopeia do encontro, os personagens principais são os pobres ribeirinhos, escravizados, marginalizados, como em outras aparições da Virgem Maria, como Guadalupe, aparecida para um pobre índio; em Fátima, para três pobres crianças; em Lourdes, para uma criança pobre e enferma, mostrando que o olhar de Deus se volta para os pequenos e abandonados.

Uma data precisa. Informação que permanece sem precisão é quanto ao dia do encontro da imagem. A narrativa redigida pelo Padre José Vilela não revela dia, mês e ano, apenas diz que “no ano de 1719 pouco mais ou menos…” Pesquisas feitas pelo escritor Basílio Machado, publicadas em 1909, esclareceram sobre o assunto, levando em consideração os arquivos do estado de São Paulo, onde há a ata de posse de Dom Pedro de Almeida, aponta que o ano do encontro da imagem foi em 1717, e não em 1719. Quanto ao mês, até 1909, acreditavam que o mês do encontro era setembro, inclusive por um tempo a Virgem com o título de Aparecida era celebrada nesse mês. Também não havia precisão da data da chegada do governador à Vila de Guaratinguetá. Fontes documentais não existiam até então, até que foi descoberto no Arquivo de Lisboa o diário da viagem de Dom Pedro, publicado no Brasil pela “Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”. De acordo com esse diário, em outubro o Conde passou por Guaratinguetá.

Como a chegada do Conde estava para acontecer entre 12 e 15 de outubro, mas tenha chegado dia 17 pelo clima chuvoso, acredita-se que a pesca se deu entre esses dias, pois, além da hipótese de os peixes serem para o banquete de recepção, também o peixe pescado devia ser consumido no mesmo dia, pela inexistência de meios de conservação de alimentos; logo, o dia mais aceito foi o 12 de outubro, dia definido para a festa de Nossa Senhora Aparecida no calendário.

A imagem esteve com Felipe Pedroso desde a pesca até 1739 (?), quando foi entregue ao seu filho Atanásio Pedroso, o último da família a tê-la em casa. Nessa época, quem sabe por ocasião da morte de Felipe Pedroso, o Vigário da Paróquia, Padre José Alves Vilela, tomou conhecimento da pesca milagrosa e dos prodígios que aconteceram no Porto Itaguaçu. A imagem que era guardada em um baú, saindo apenas na hora da reza, por iniciativa de Atanásio e com autorização do Vigário, foi colocada em um oratório para veneração pública. Desse feito em diante, não seria mais a imagem objeto de devoção familiar e particular apenas, mas para veneração da Igreja.

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