Tudo pode ser visto como sinal de outra coisa: o descascar da laranja, a briga com o pároco, a compra da carne no açougue, a desobediência do filho…. Quem tiver olhos que veja. Em Adélia Prado, sinal e mistério são uma coisa só.
A primeira vez que li um texto da Adélia Prado fiquei muito decepcionada! O poema era muito simples e tolo. Descrevia uma mulher que cozinhava a vida toda um trivial mineiro sem graça e sem fim e que – apesar disso – cantava:
“Minha mãe cozinhava / Arroz feijão, molho de batatinhas / Mas cantava” (“Solar”[in] Coração disparado. Rio de Janeiro: Record, 2006).
Graças a amigos muito mais interessantes e inteligentes do que eu, fui revisitando seus textos até entender que sem graça era eu e não o poema! E muito mais do que isso, esses três versos são como um hino de libertação porque, então, não era necessário acontecer absolutamente nada de genial, excepcional e incrível para que fosse possível cantar? Quer dizer que a vida podia ser fabulosa em sua repetição miúda e sem glamour, sem likes, nem seguidores, a vida anônima e pálida emanava uma luz que os olhos embaçados, engordurados da nossa velhice iniciada na adolescência não conseguia mais ver?
Adélia Prado é assim. A realidade a impacta. Ela esperneia até chegar num ponto em que algo se revela daquele cotidiano. E isso acontece até quando está tudo em paz porque o que ela deseja é descobrir o significado das coisas, de todas as coisas grandes ou pequenas do cotidiano.
Nosso Deus é encarnado, se eu perco a realidade perco Deus. Então ela leva muito a sério qualquer momento da realidade. Ao mesmo tempo que não tem medo dela porque Deus está ali e, de alguma maneira, ela vai – como ela mesma diz – espernear até descobrir.
Vejamos, por exemplo, esse trecho genial, em que ela descreve a chegada da luz elétrica na casa da narradora do livro:
“Quando inauguraram a luz elétrica na minha casa, meu pai convidou os vizinhos e serviu café acompanhado, depois de rezar o terço, onde se contemplou no quarto mistério glorioso, como Jesus, quarenta dias após sua ressurreição, subiu ao céu na presença de sua mãe santíssima e dos apóstolos. Não esplende o sol, como esplendeu naquele dia a lâmpada Alva Edison sobre a mesa quadrada e nossas quatro cadeiras. Que lugar terá este fato irreversível, no cômputo final, quando o Senhor reunir o povo pra separar os bodes dos carneiros, assim como os sacos de plástico e as carteirinhas onde os fotógrafos acomodam para os fregueses seus retratos três por quatro e mais esta frase escrita com letra ginasial na página de um livro de Histórias do Brasil: Ferreira Brito substituiu Araújo Ribeiro.” (Solte os Cachorros. Rio de Janeiro: Record, 2006)
Nada, absolutamente, nada na vida é desperdiçado e não por um dever, por termos que levar a vida a sério, mas porque – na vida, em qualquer parte dela, aí, dentro dela – a razão de todas as coisas se revela! Por isso a realidade a atrai e, se a atrai, quer levá-la a sério! É assim que o cristianismo nos faz respirar porque a transcendência ocorre ali, onde e como a gente vive.
E para que lermos escritores assim? Para que eles possam ser uma companhia que nos ajude a entrar na vida sem medo, sem que precisemos nos distrair demais ou fingirmos que nada está acontecendo. Uma provocação para viver uma abertura, encontrar um vínculo entre as circunstâncias e seu significado. Eu desejo aprender a viver desse jeito!
Termino com um outro autor que é, também, ótima companhia, Guimarães Rosa:
“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.” (“O espelho” [in] Primeiras estórias, São Paulo: Global Editora, 2019).