As obras de Deus são fascinantes

A beleza do amor de Deus se revela a nós não só por meio dos ensinamentos cristãos, mas em toda a criação, nas artes e nas engenharias realizadas pela humanidade, nas descobertas da ciência e na filosofia. Mas, para penetrarmos nesse mundo de fascínio e beleza, necessitamos de uma educação adequada, precisamos percorrer a via da beleza – e ajudar nossos irmãos e irmãs a virem conosco nesse caminho.

Sergio Ricciuto Conte

No primeiro capítulo do livro do Gênesis, lemos repetidas vezes que Deus, à medida que vai criando todo o universo, vai se dando conta de que tudo que fazia “era bom”. Contudo, esta expressão provavelmente não dá conta do significado do texto original hebraico – no qual a palavra para “bom” é טוֹב (tov). Na Septuaginta, tradução do Antigo Testamento provavelmente feita por eruditos judeus, em Alexandria, no século III a.C., a palavra empregada nessas passagens do Gênesis é καλός (kalos). As duas palavras (טוֹב e καλός) têm em comum o fato de poderem ser aplicadas tanto para designar “bom” quanto “belo”. Apenas na versão latina, a Vulgata, surge o problema de optar entre duas palavras: bonum (bom) ou pulchrum (belo) – e os tradutores irão optar pelo uso de bonum.

No grego, existe a palavra ἀγαθός (agathos), usada para se referir àquilo ou àqueles que são bons. Portanto, a opção por καλός, feita pelos primeiros tradutores do hebraico para o grego, não foi acidental. Deus não apenas viu que suas obras eram boas, mas viu igualmente que eram belas – numa acepção segundo a qual as duas qualidades são indissociáveis: o bom se apresenta como belo e a beleza implica bondade. Entre crianças pequenas, frequentemente vemos essa mesma postura: pessoas vistas como boas são consideradas bonitas. O desenvolvimento da linguagem, ao precisar os dois conceitos, “bom” e “belo”, aumenta o risco do esteticismo, a contemplação das formas sem olhar seu conteúdo, e do moralismo, a norma reduzida à forma, desconhecendo seu valor original.

O ser humano encontra a Deus graças ao Seu amor gratuito, que é caridade e misericórdia para conosco. Contudo, o que podemos dizer de um amor que não se revela como beleza? Será possível um amor que se torna maduro e fecundo e não se descobre belo? Pode haver um verdadeiro caminho cristão que não seja tomado pela beleza e pelo fascínio de se descobrir amado e capaz de amar? Em um documento de 2006, do então Pontifício Conselho para a Cultura, lemos:

“Muitos, infelizmente, percebem o Cristianismo como uma submissão a mandamentos compostos de proibições e limites à liberdade pessoal. O Papa Bento XVI recordou-o durante uma entrevista à Rádio Vaticano, no dia 14 de agosto de 2005, antes de partir para Colônia para se encontrar com jovens de todo o mundo reunidos para as Jornadas Mundiais da Juventude. E disse, entre outras coisas: ‘Eu, porém, gostaria de fazê-los compreender que ser sustentado por um grande Amor e por uma revelação não é um peso: isto dá-te asas e é belo ser cristão. Esta experiência dá amplitude… A alegria de ser cristão: é belo e também é certo acreditar’” (Via pulchritudinis, caminho privilegiado de evangelização e diálogo).

Sim, a cultura cristã é uma cultura da Beleza – e, por isso, capaz de se deixar fascinar por toda beleza. Mesmo aquela feiura que muitas vezes é apresentada como beleza, paradoxalmente, pode nos revelar a verdadeira beleza. Como uma imagem em negativo, que nos mostra as formas, ainda que com cores trocadas, a falsa beleza nos fala da dor humana, dos anseios irrealizados, do desespero dos caminhos errados. E, dessa forma, nos mostra a beleza desse coração carente de Deus, que clama ao universo pela ternura de um amor verdadeiro.

Mas, o caminho da beleza, a via pulchritudinis, precisa ser trilhado em comunidade, num trajeto onde aqueles que já descobriram o fascínio da ação do Senhor nos diferentes aspectos da vida nos ajudam a reconhecer o belo que se esconde em cada aspecto do real. Alguns podem nos ajudar no campo das ciências da natureza, outros mostrarão a beleza da matemática, os artistas serão mestres privilegiados, o magistério da Igreja nos apresenta a própria beleza de Deus… cada um de nós tem algo a ensinar e muito a aprender…

Pensando nisso, e valendo-se dessa possibilidade de releitura da frase do Gênesis, os mosteiros beneditinos camaldolenses da Transfiguração e da Encarnação, em Mogi das Cruzes (SP), realizarão em 2024 uma série de encontros com o título geral “Deus viu que tudo era muito belo” (cf. Gn 1,31), em que professores capacitados apresentarão diferentes temas sob a ótica da beleza que se mostra a partir da fé cristã… E esta edição dos Cadernos Fé e Cultura retoma este tema para falar de monaquismo, beleza e cultura.

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