Nascidos da intuição de um papa humilde e improvável, os jubileus aconteceram 36 vezes em sete séculos, anunciando o perdão e a misericórida, apesar dos pecados e das falhas dos seres humanos

Em 1294, houve um acontecimento notável na história da Igreja. Os cardeais não conseguiam escolher um sucessor para o Papa Nicolau IV. Pietro da Morrone, um monge eremita, predisse “graves castigos” se a Igreja não escolhesse logo este sucessor. A solução encontrada foi eleger o próprio monge eremita como papa. Ele escolheu chamar-se Celestino V e uma de suas primeiras providências foi promulgar a chamada Bula do Perdão, Inter sanctorum solemnia, a primeira a sistematizar que, mediante uma peregrinação, se conseguisse a indulgência plenária – dada a todos que visitassem a Basílica de Santa Maria de Collemaggio, em Áquila, na festa de São João Batista.
Homem pouco afeito aos jogos de poder, Celestino V renunciou 161 dias depois de assumir. Perseguido pelo seu sucessor, Bonifácio VIII, que temia sua influência moral, morreu recluso e foi canonizado como São Pedro Celestino. Um papado curto e extraordinário, que deixou um legado inestimável à Igreja.
O reinício de um caminho. Bonifácio VIII foi um papa polêmico, envolvido demais em questões políticas. Consta, porém, que em dezembro de 1299 ficou sabendo que havia se espalhado a ideia de que, em 1300, os peregrinos poderiam receber uma indulgência plenária visitando as igrejas de Roma. Reconhecendo o afluxo de peregrinos e o desejo de perdão e reconciliação, teria decidido oficializar essa expectativa por meio de uma bula papal, aos moldes da redigida por seu antecessor, proclamando o primeiro jubileu. Não era apenas uma intuição genial de um papa, mas algo que Deus mesmo havia construído em meio a seu povo.
Em uma sociedade profundamente devota, como a europeia da época, o jubileu, com a obrigatoriedade de visitar as Basílicas de São Pedro e de São Paulo Fora dos Muros para ganhar a indulgência, representava uma afirmação do poder espiritual (e, indiretamente, também temporal) de Roma. Contudo, por mais discutível que possam ser as ações daquele pontífice, é inegável a força do apelo ao Jubileu. O número estimado de fiéis que participaram do jubileu é impressionante. Apesar das difíceis condições de viagem na época, existem estimativas de que cerca de 2 milhões de fiéis acorreram a Roma naquele ano – numa Europa que tinha entre 70 e 80 milhões de habitantes (hoje são cerca de 750 milhões). A cidade de Roma teria apenas cerca de 35 mil habitantes, mas teria havido dias em que recebeu até 200 mil peregrinos.
Uma história de peregrinos. A maior parte dos jubileus aconteceu em uma época em que viajar era uma aventura repleta de imprevistos e perigos. As viagens podiam durar meses, quando se saía dos pontos mais distantes da Europa. As estradas eram malconservadas e lamacentas, infestadas de bandidos. Havia poucas e precárias pousadas, podia-se facilmente passar fome.
As viagens aconteciam no lombo de mulas ou em carroças, ou a cavalo (para os mais ricos), mas para a maioria dos peregrinos essa rota era feita, principalmente, a pé. A incerteza reinava. A peregrinação era um risco e alguns peregrinos, antes de partir, chegavam a fazer um testamento, sem saber se voltariam. As adversidades estavam associadas aos esforços que deviam ser realizados para obter a remissão dos pecados. A purificação começava com os sacrifícios e o despojamento das próprias seguranças. O perdão se mostrava merecido, no final, por todos os sofrimentos padecidos ao longo do caminho.
Para o peregrino, o jubileu era o acontecimento de uma vida. Uma experiência de mendicância: o ser limitado, contraditório e infiel, conhecedor das próprias faltas, que se dirige a seu Criador confiante num perdão sabidamente imerecido, mas ao qual ele espera fazer jus por meio de sua penitência. Viver o jubileu, ganhar o perdão das indulgências que lhe estavam ligadas, era uma experiência que solicitava a totalidade do sujeito humano, dizia respeito não somente à alma, mas também aos afetos, à materialidade da vida, apela à totalidade das próprias energias, incluindo aquelas primordiais do corpo.
Por tudo isso, nas palavras de Danilo Zardin, curador da Mostra do Meeting, de Rimini, Jubileu, o perdão que doa a vida: “A marca mais evidente da peregrinação tornou-se, na arte dos séculos passados, a vara de suporte, o chapéu de abas largas para se proteger do sol e das intempéries, e o desfecho, extremo e comovente, dos pés descalços e sujos em primeiro plano dos peregrinos diante da Virgem numa célebre obra de Caravaggio (N.E.: Madona de Loreto, do início do século XVII). O substrato básico da tradição histórica dos jubileus é alimentado pela tensão de um desconforto e de uma precariedade que, em vez de esmagar o ego humano em um mal-estar incurável, o incita a sair de si mesmo, a procurar maneiras de dar uma resposta ao vazio que experimenta, a encontrar uma mão firme para se agarrar e pousar na outra margem de uma vida remida”.
Um acontecimento na história de um povo. A cronologia dos jubileus atesta a importância do gesto. Bonifácio imaginou-os como eventos extraordinários, que ocorreriam apenas nas viradas de século. Seus sucessores pensaram diferentemente, e novos jubileus foram comemorados em 1350 e 1390. Aquele de 1350 aconteceu durante o período em que o papa, na época o francês Clemente VI, residia em Avignon, e coincidiu com a peste negra, cujo pico teria sido entre 1348 e 1350, e a Guerra dos Cem Anos, entre Inglaterra e França, que se iniciou em 1337. Mesmo assim, calcula-se que as igrejas romanas receberam cerca de 1,5 milhão de fiéis.
O Jubileu de 1390 refletia a tendência de tornar os jubileus eventos mais frequentes, acessíveis a todas as gerações de cristãos. A proposta era a de ocorrer um jubileu a cada 33 anos (idade de Cristo). Contudo, aconteceu num momento cismático (que se estendeu de 1378 a 1415), tendo sido convocado pelos papas de Roma (Urbano VI, que instituiu o jubileu mas morreu antes de sua realização, e Bonifácio IX) e proibido pelo antipapa de Avignon (Clemente VII). Só em 1450 houve um novo jubileu e, em 1475, iniciaram-se as celebrações periódicas a cada 25 anos, como são até hoje. Depois disso, os jubileus foram ganhando cada vez mais importância na vida do povo, chegando a mover algo entre 200 mil e 500 mil peregrinos a cada ocasião.
No Ano Santo de 1750, sob o papado de Bento XIV, segundo as crônicas da época, mais de um milhão de peregrinos viajaram até Roma, alguns vindos das Antilhas, Egito e Armênia. As instituições de caridade e hospitalares romanas foram forçadas a alugar palácios para acomodar os visitantes. O papa instituiu, naquele ano, a Via Crucis no Coliseu, tradição que perdura até nossos dias.
Os jubileus haviam se tornado um acontecimento que envolvia não apenas o mundo religioso, mas toda a vida da sociedade, mesmo que apenas alguns conseguissem chegar a Roma.
A Porta Santa. Uma das portas laterais da Basílica de Santa Maria de Collemaggio, à qual os peregrinos acorriam para obter a indulgência, seguindo a indicação de São Pedro Celestino, foi constituída como “Porta Santa” e por ela deveriam passar os penitentes. No Jubileu de 1500, o Papa Alexandre VI desejava um evento marcante para o seu início e identificou-o na abertura da Porta Santa na Basílica de São Pedro, feita pelo próprio papa, e nas demais basílicas de Roma, realizada por seus legados. A simbologia remetia ao Evangelho segundo João: “Eu sou a porta, quem entrar por mim será salvo” (Jo 10,9). Até hoje, no início dos anos jubilares, as Portas Santas são abertas e assim permanecem até o final do jubileu, quando são fechadas e vedadas por muros até aquele seguinte.
Recentemente, no Jubileu Extraordinário da Misericórdia, de 2015, o Papa Francisco autorizou a abertura de “portas da misericórdia”, com significado similar ao das portas santas, em diferentes igrejas particulares (Misericordiae Vultus, MV 3). É o caso da Porta da Misericórdia da Basílica de Nossa Senhora Aparecida, no Brasil. Passar por uma porta específica não é uma condição para se obter a indulgência, porém a entrada no santuário, após uma peregrinação exaustiva, tem um inegável impacto humano, que todo romeiro pode testemunhar. Ajudar a perceber, não como teoria, mas como experiência totalizante, o que Cristo quer nos dizer ao afirmar “Eu sou a porta”.