Da importância de conectar-nos com a história

A memória histórica da Igreja Católica não é apenas um registro do passado, mas uma ferramenta vital para construir o futuro. Ao abraçar sua história, a Igreja pode aprender com seus erros, fortalecer sua identidade e cumprir sua missão no mundo

Ícone ortodoxo oriental representando o Primeiro Concílio de Nicéia (325). Fonte: Wikipedia

Na Carta sobre a renovação do estudo da história da Igreja, o Papa Francisco nos diz: “É preciso dizer que hoje em dia todos, todos, e não só os candidatos ao sacerdócio, necessitamos renovar a nossa sensibilidade histórica […] Com efeito, para compreender a realidade é necessário enquadrá-la na diacronia, quando a tendência é a de se apoiar em leituras dos fenômenos que os comprimem na sincronia”. A memória histórica da fé católica é vasta e abrange mais de dois milênios, desde o nascimento de Jesus Cristo até os dias atuais. Ela é marcada por momentos de grande fervor religioso e expansão missionária, por desafios teológicos e grandes transformações sociais. Na sua cronologia, tivemos vários períodos importantes, cada qual com suas importantes lições.

O período do Cristianismo Primitivo (séculos I-IV) inicia-se com o nascimento de Cristo e continua com as pregações dos apóstolos e a expansão do Cristianismo pelo então Império Romano. É o período das grandes perseguições a seus seguidores e do Concílio de Niceia (325), no qual se propôs a definição do Credo Niceno e da natureza divina de Cristo. Esse foi o primeiro Concílio Ecumênico da Igreja Católica, e procurou estabelecer um consenso sobre a natureza divina de Jesus Cristo, se contrapondo à interpretação arianista, que questionava a divindade de Jesus Cristo. Além disso, coube a esse Concílio a redação do Credo de Niceia e nele se fixou a data da Páscoa. Era um tempo marcado pela necessidade de harmonizar internamente a Igreja e evitar que heresias a dividissem – necessidades que nunca deixarão de existir.

Na Idade Média (séculos V-XV), tivemos a ascensão do papado e fortalecimento da Igreja Católica. Na sequência, a expansão do monaquismo e desenvolvimento da teologia medieval. Claro que nada foi tão fácil e harmônico. Tivemos o Cisma do Oriente (1054) e a separação da Igreja Católica Romana da Igreja Ortodoxa, as cruzadas e suas expedições militares para recuperar a Terra Santa, momentos às vezes cruéis com a Inquisição e seus tribunais para combater as heresias. Mas também foi o período em que a Igreja Católica estabeleceu as primeiras universidades; criou uma rede de assistência social, cuidando de doentes e necessitados; preservou textos clássicos em mosteiros, salvando obras da antiguidade; desenvolveu sistemas agrícolas inovadores, e promoveu artes como arquitetura gótica e música gregoriana. A Igreja também estabeleceu o direito canônico, influenciando sistemas jurídicos modernos (a própria Inquisição introduziu o registro escrito detalhado dos processos, o exame de testemunhas e a necessidade de provas concretas para sustentar acusações).

Chegamos à Idade Moderna (séculos XVI-XVIII). Os conflitos da Reforma Protestante levaram a mais uma divisão da Igreja com o surgimento de novas denominações cristãs. Mudanças significativas que solicitaram uma Contrarreforma como resposta católica, com o Concílio de Trento, que reafirmou a autoridade papal e os dogmas da fé e os sete sacramentos da Igreja Católica; proibiu a venda de indulgências; estabeleceu regras para moralizar o clero; declarou que a Vulgata era a única tradução válida da Bíblia; estabeleceu normas para a impressão e aprovação de livros sobre assuntos sagrados (censura católica). Este período viu ainda a expansão missionária para as Américas, África e Ásia; e o surgimento do Iluminismo, questionando a autoridade da Igreja e o papel da religião na sociedade.

Por fim, na Idade Contemporânea (séculos XIX-XXI), a diminuição da influência religiosa na sociedade ocidental apresentou um grande desafio. A Igreja, com o Concílio Vaticano I (1869-1870), pretendeu combater os desvios do racionalismo, o materialismo e o ateísmo, defendendo os fundamentos da fé católica. Foi um momento-chave na formação da identidade católica contemporânea, ainda que aumentando a tensão entre a sociedade política e a Igreja. Já a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965), que buscou a atualização da Igreja e sua abertura ao diálogo com os tempos atuais, a Igreja tem vivenciado novas formas de evangelização e de relação com o mundo secular, conciliando fé e razão, se engajando em debates sobre temas complexos, como bioética e inteligência artificial – equilibrando a fidelidade à sua tradição com a necessidade de se adaptar aos novos tempos.

Em sua carta sobre a renovação do estudo da história da Igreja, o Papa Franscisco conclui: “Gostaria de recordar que estamos a falar de estudo e não de conversa fiada, de leitura superficial, de ‘cópia e cola’ de resumos da Internet. Hoje em dia, muitas pessoas estimulam a perseguir o sucesso a baixo preço, desacreditando o sacrifício, inculcando a ideia de que o estudo não serve se não leva imediatamente a algo concreto. Não, o estudo serve para se questionar, para não deixar anestesiar pela banalidade, para procurar um sentido na vida […] Eis a vossa tarefa: responder aos estribilhos paralisantes do consumismo cultural com escolhas dinâmicas e fortes, com a riqueza, o conhecimento e a partilha”.

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