E Deus permaneceu lá

Uma estória desconcertante, mas obrigatória, para nossos tempos… Lembra a brutal perseguição aos cristãos em um país de forte tradição católica, mas seu protagonista é um padre infiel, de conduta reprovável, cujo único mérito parece ser o de permanecer onde todos os outros se foram… Um comovente retrato de como “o poder e a glória” refulgem não só apesar, mas dentro mesmo, da miséria humana.

Caçado por forças de segurança, o último padre de toda a região percorre aldeias e florestas, fazendo diversos encontros pelo caminho. Tal é, em síntese, a situação apresentada em O Poder e a Glória, um dos mais famosos romances do escritor inglês Graham Greene (1904-1991).

A história se passa no México dos anos 1930, palco de feroz perseguição aos católicos, quando os “Camisas Vermelhas” levaram dezenas de leigos e religiosos ao martírio. Greene visitou o país em 1938 e conheceu de perto a situação. A despeito de abordar tema atualíssimo (o livro é de 1940), são raras as alusões a personalidades históricas ou aos terríveis acontecimentos ocorridos. Contornando polêmicas políticas, o autor concentra sua atenção nos personagens e em seus dramas.

O sugestivo título faz referência à fórmula recitada na missa após o Pai Nosso e se abre para várias leituras. A mais evidente está baseada na oposição entre o poder de um governo despótico, que pretendia eliminar qualquer vestígio da presença cristã da memória do povo, e a glória da Igreja, ainda que acossada e frágil. Curiosamente, os personagens principais (o padre fugitivo e o tenente de polícia) não têm seus nomes revelados, uma vez que simbolizam os dois polos em conflito. Note-se que uma terceira figura significativa do livro também não possui nome próprio, sendo referido apenas como “o mestiço”, termo que resume sua condição ambígua, na qual se mesclam uma fé, que em certos momentos parece sincera, e o sórdido apego a seus interesses pessoais.

Seu protagonista não corresponde ao retrato idealizado do sacerdote fiel. Em oposição à imagem do mártir que enfrenta corajosamente seu destino, o padre é um verdadeiro anti-herói. Alcoólatra e pai de uma filha concebida em um momento de fraqueza, trata-se de mau religioso, permanentemente esmagado pela consciência de sua indignidade, alguém cuja fé nada tem de atraente ou luminoso. Falta-lhe a firmeza de seu oponente, o oficial de polícia, caracterizado pela estrita observância de seus deveres e pela devoção aos ideais revolucionários.

O que fez com que este mísero sacerdote seja o único a não fugir? Por que ele recusou a oportunidade de permanecer na região, contanto que renunciasse aos votos, tomando esposa, como fizeram seus colegas? Quando questionado acerca dos motivos pelos quais aceitara passar anos na clandestinidade e sob constante ameaça de morte, ele mesmo parece não saber a resposta: seria orgulho ou apego a velhos hábitos? Fato é que pelo menos em duas oportunidades claras de alcançar departamentos vizinhos (onde o clero ainda era tolerado), o padre não pôde deixar de atender ao chamado dos que imploravam por ajuda, voltando a colocar-se em risco.

Acompanhando a marcha do padre em fuga, o leitor testemunha a degradação extrema que, em determinada circunstância, obriga-o a disputar comida com um cão. Por outro lado, a precariedade das condições leva-o também a pôr de lado todo formalismo autocomplacente que tantas vezes caracteriza os círculos religiosos: foi em uma abjeta cela de prisão, por exemplo, em meio a criminosos e prostitutas, que o sacerdote conseguiu exprimir-se de modo mais autêntico, sem as usuais fórmulas prontas que usava com seus paroquianos.

Portanto, o que explica o comportamento deste padre ao mesmo tempo leal e incoerente é a simplicidade de espírito que, apesar de tudo, o caracteriza. Em suma, a opressão exercida pelo governo ou a feiura dos próprios pecados não foram capazes de suplantar seu singelo apego ao fato de ter sido chamado ao sacerdócio. Assim, a obra de Graham Greene nos lembra que, diferentemente do que pensamos, o poder e a glória não dependem da força, da qualidade dos resultados obtidos e até mesmo dos méritos, nossos ou alheios.

GREENE, Graham. O poder e a glória. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2020.

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