Em face de São Francisco e de seu paradoxo

A resposta de Chesterton à pergunta: o que torna São Francisco tão fascinante, apesar de seu estilo de vida parecer tão pouco atrativo aos nossos olhos de hoje?

CHESTERTON, G.K. São Francisco de Assis. Campinas: Ecclesiae, 2014.

Em seu livro sobre São Francisco de Assis, G. K. Chesterton escreveu um capítulo preambular que se intitula “o problema de São Francisco”. Problema é aquilo que está à nossa frente como obstáculo. Para o ser humano moderno, São Francisco é um problema. Por um lado, São Francisco o atrai, como uma figura histórica na qual se refletem virtudes humanísticas, sociais, democráticas, ecológicas. Por outro lado, São Francisco o repele, pela sua religiosidade radical, pela sua austeridade ascética, por se mostrar como um homem de sofrimento, por sua identificação, pelos estigmas, com o Cristo Crucificado etc. São Francisco lhe parece paradoxal. Como pode um homem ser capaz da mais profunda fome da vida feliz e, ao mesmo tempo, de uma profunda sede de uma morte heroica? Nós, hodiernos, de fato, costumamos admirar e louvar as flores de jovialidade, de simpatia, de amor, de liberdade que São Francisco oferece-nos, mas receamos e repelimos o modo como elas se enraízam no chão sombrio da nossa humanidade, por uma vida de pobreza, humildade, obediência, austeridade, penitência.

O problema de São Francisco nos põe em face, pois, a um paradoxo. A palavra “paradoxo” pode ser tomada como contradição e como incongruência, inconsistência lógica. Mas a palavra “paradoxo” pode ser tomada no seu sentido originário: como o que transcende as aparências e os pareceres humanos usuais: algo de extraordinário, de maravilhoso. O nosso Guimarães Rosa disse, certa vez: “tudo: a vida, a mor­te, tudo é, no fundo, paradoxo. Os paradoxos existem para que se possa exprimir algo para o qual não existem palavras” (LORENZ, G.W. Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro. São Paulo: E.P.U., 1973). Ora, a poesia é a linguagem do indizível. Talvez seja por isso que Chesterton nos dá uma senha para nos relacionar com São Francisco: ele era um trovador – um trovador “de um romance novo e mais nobre”.

São Francisco foi um poeta, um cantador, um trovador, um arauto… do Grande Rei. Assim, ele se compreendeu e se anunciou no início de sua conversão, quando, vestido de andrajos e cantando os louvores de Deus em francês, foi assaltado por ladrões. Estes lhe perguntaram brutalmente quem ele era, “e ele respondeu com voz forte e confiante: Sou um arauto do grande Rei! Que é que vocês têm com isso?”. Por esta resposta, levou uma surra, e ficou jogado na neve, e lhe disseram: “fica aí, pobre arauto de Deus” (CELANO, T. Primeira Vida de São Francisco 7, 16). Chesterton identifica o arauto com o trovador, o proclamador solene, o pregoeiro, com o trovador, o cantador-poeta. E, indo adiante, identifica o trovador com o amante. E eis aqui a senha decisiva: São Francisco foi um amante. “Um amante de Deus, e amante sincero e verdadeiro dos homens, possivelmente uma vocação mística muito rara” (Idem). Mas, nos adverte o inglês, Francisco não amou a humanidade como um filantropo. Amou os seres humanos. Do mesmo modo, não amou o Cristianismo, amou Cristo. Francisco não amou um ideário ou uma doutrina. Francisco amou pessoas: a pessoa de Jesus Cristo e as pessoas humanas que, a cada vez, ele encontrava. Era um ser humano de encontros pessoais profundos. Era um amante de amor ardente (os medievais diriam: seráfico).

Quando amamos, amamos antes de tudo o amor. A graça do amor, seu encanto, que merece ser cantado, está na gratuidade. São Francisco nos ensina a tornar a nossa vida um canto à gratuidade do amor. Nela está a riqueza essencial, que só os pobres do espírito podem fruir. O destino do ser humano sobre a terra hoje não depende de ele descobrir e amar esta riqueza ardentemente?

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