‘Lectio Divina’: não uma técnica, mas um modo de estar diante de Deus

É a Palavra de Deus que gera vida, conversão dos costumes, alegria, paz, sabedoria e ensina a viver; não a estrutura de uma comunidade, mesmo que seja uma boa e bem planejada estrutura eclesial. A Igreja sempre poderá se renovar a partir da volta à leitura sapiencial da Bíblia, pela luz e contato direto com a Palavra de Deus.

A Bíblia é o livro mais apaixonante que existe. Ler, meditar e rezar com a Bíblia foi e é o alimento diário dos monges e monjas desde o início do monaquismo nos séculos III e IV. Uma vez, perguntei a Dom Emanuele Bargellini, que foi durante muitos anos prior geral da ordem beneditina camaldolense: como se faz para durar 1000 anos? Os monges e monjas camaldolenses iniciaram sua experiência monástica pouco após o ano mil… O que sustenta ininterruptamente uma congregação por mil anos? Ele respondeu: a Lectio Divina. A prática de ensinar e alimentar a fé de cada monge e monja, diariamente, por meio da leitura e meditação da Palavra de Deus. 

Ler e meditar a Bíblia (Rio Bonito: Benedictus, 2024), do monge camaldolense Dom Innocenzo Gargano, nasceu para auxiliar catequistas a ensinar a ler e a meditar a Bíblia, segundo a tradição monástica, seguindo a chamada Lectio Divina – que pode ser traduzida como “leitura orante” ou “leitura sapiencial” da Bíblia. O livro introduz essa prática monástica de leitura e meditação da Palavra de Deus, essencial para a vida espiritual dos monges desde os primórdios do monaquismo.

Os primeiros monges e monjas que viviam no deserto do Egito e da Palestina liam as Escrituras como faziam os hebreus nas sinagogas, como fez Jesus naquele dia na sinagoga de Nazaré quando lhe foi dado o rolo com o livro do profeta Isaías e Ele se levantou e escolheu o trecho que dizia: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para levar a boa nova aos pobres” (Lc 4,16-19), e depois sentou-se e passou a comentá-lo. Ele estava fazendo uma leitura sapiencial das Escrituras como se fazia todos os sábados na sinagoga. Mas logo, seguindo o exemplo de Jesus, em seu encontro com os discípulos de Emaús, a tradição monástica primitiva passou a ler o Antigo Testamento, os profetas e os acontecimentos da história de Israel, tendo como chave de leitura tudo o que tinha acontecido com Jesus.

Na Lectio Divina, poderíamos substituir o termo LEITURA por ESCUTA. Escuta da palavra de Deus – e, para escutar, precisamos criar um contexto de silêncio e solidão, tal que possamos perceber o “sussurro” daquilo que acabamos de ler. Devemos, de alguma forma, reviver a experiência de Elias que precisou aguçar o ouvido antes de descobrir o Senhor na tênue voz do vento (1Rs 19, 9-14).

O cristão tem consciência de que a Bíblia nos vem pela comunidade, é colocada em nossas mãos, de forma viva, por uma comunidade vivente. Não pode ser descoberta individualistamente. Pode acontecer que alguém se aproxime dela sozinho, mas esta mesma descoberta o conduzirá inevitavelmente a uma comunidade que faz deste livro o seu ponto de referência vital. O encontro individual não é suficiente. 

Se não se é Igreja, não se pode pretender entender a Bíblia. Para encontrá-la e compreendê-la em profundidade é preciso estar em comunhão com a Igreja – tanto a nossa pequena comunidade, quanto aquela que se expande até os confins do mundo. A isso a tradição monástica chama collatio ou coleção: pôr à disposição da comunidade o que aprendi e, ao mesmo tempo, estar muito aberto para ser enriquecido pelo que os outros entenderam do texto.

Dom Innocenzo explica este modo de se colocar diante das Escrituras à medida que também apresenta as quatro bem conhecidas etapas da “leitura orante”, Lectio, Meditatio, Oratio e Contemplatio, mostrando como cada uma colabora para um diálogo pessoal com a Palavra de Deus.

GARGANO, Innocenzo. Ler e meditar a Bíblia: uma breve introdução à Lectio Divina. Rio Bonito: Benedictus, 2024.

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